Maria Ribeiro: “Meu Brasil toca no rádio e é a esse país que pertenço”
"Meus hinos nacionais foram compostos por tropicalistas e é a eles que recorro quando preciso reafirmar o amor por minha terra-mãe", escreve a atriz
Escrevo esta coluna no Dia da Independência. Da minha, da sua e de todos aqueles que já preencheram, de forma automática e trivial, a palavra “brasileiro” ou “brasileira” em uma ficha de identificação. A nacionalidade, ao contrário de “gavetas opcionais” como endereço, profissão ou estado civil, não costuma ser um campo muito democrático.
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Quer saber? Acho bonito que seja assim. É amor incondicional ou seu dinheiro de volta, seja o presidente um ex-capitão do Exército e vizinho de matadores milicianos ou um ex-operário nordestino que, depois de três tentativas frustradas, finalmente foi alçado ao principal cargo executivo do país. Ninguém falou que seria fácil.
Sozinha em São Paulo, dentro do meu quarto de hotel, ouço um homem discursar sozinho na Avenida Paulista. A poucos quilômetros do Ipiranga, onde Dom Pedro I, de mãos dadas com a então colônia portuguesa para a qual havia sido trazido anos antes, deu o grito que escolheu, não só por nós, mas também para si. Uma pátria para chamar de sua.
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Penso nos gritos que, também eu (Freud feelings), dei até aqui. Gritos de amor e ódio, de maternidade e de independência, de mudanças e recuos, casamentos e separações, patriotismos e abandonos.
Nasci numa família de classe média “alta” (creio que não preciso justificar as aspas). Achava normal ter cama e comida feitas por outras pessoas durante a infância e a juventude. Antes da pandemia de 2020, eu jamais havia feito uma única faxina na vida. Dez anos atrás — talvez até menos — não pensava sobre machismo ou racismo e, ainda hoje, não posso dizer que esteja livre dos sintomas das nossas doenças sociais.
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Agora, quando penso na trajetória do Brasil e no triste caminho eleitoral que nos trouxe até aqui, penso também na minha pequena ação diária de cidadã, e incluo, sem medo de me olhar no espelho, as faltas que cometi nesses 44 anos como habitante deste pequeno latifúndio de terra redonda na América do Sul. E foram muitas.
Por outro lado, seguindo a máxima “Diga-me com quem andas e te direi quem és”, desconfio que, ao menos nas escolhas da minha Seleção Canarinho de Valorização da Vida, que poderia perfeitamente batizar de SCVV, amei certo desde muito cedo.
João Gilberto, Vinicius de Moraes, Antônio Brasileiro, Chico Buarque, Jorge Ben Jor, Moraes Moreira, Jorge Mautner, Tom Zé, Gilberto Gil, Milton Nascimento e Caetano Veloso foram e seguem sendo o meu caneco de todas as Copas, incluindo a de 2014.
Contra o meu ataque dos sonhos — e em minha fantasia todos estão com a camisa do Fluminense — não tem para a Alemanha, França, Holanda, tampouco para Ricardo Salles e Paulo Guedes. Meu Brasil toca no rádio, e é a esse país que pertenço. Meus hinos nacionais foram compostos por tropicalistas, e é a eles que recorro quando preciso reafirmar o amor estremecido por minha terra-mãe, o que tem acontecido com triste frequência nos últimos anos.
Lembro de, quando menina, todos os dias, ao chegar à escola em Botafogo, no Rio de Janeiro, formar uma fila junto aos meus colegas e, digamos assim, louvar o país. Reverentes e cheias de respeito, centenas de crianças cantavam os hinos, não só o da escola, mas também o da Bandeira, da Marinha e, por último, o Hino Nacional. Eu, nos meus 8 anos, achava o ritual bonito, pensando, comprometida, que a perspectiva de ser uma boa brasileira não me era nada má. Jamais imaginei que pudéssemos estar novamente sob a sombra de uma ditadura.
De lá para cá, muitos anos se passaram, e fui fazendo escolhas, sejam elas político-partidárias, amorosas, profissionais ou familiares. Ao longo do tempo, fui redigindo mentalmente manuais — grandes e pequenos — de como estar no meu recorte de mundo, desde de me posicionar como artista até não desviar o olhar de quem me aborda vendendo balas no sinal, mesmo que seja para dizer “Não, obrigada”.
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E se segui, por todo esse tempo, fiel à minha bandeira, mesmo que por muitas vezes brigando com suas cores recentemente usurpadas por apoiadores do presidente em exercício, não posso dizer o mesmo de seus dizeres. Há muito não me sinto representada pelo “Ordem e Progresso”, mas ainda não havia encontrado nada que ecoasse fundo no meu peito para que pudesse substituir a tal frase em meu coração de menina na fila da escola.
Nada até hoje. Porque neste 7 de setembro de 2020 — talvez o mais difícil de toda a história do nosso país — vi Narciso em Férias, filme de Renato Terra e Ricardo Calil, produzido por Paula Lavigne, sobre a prisão de Caetano Veloso no fim de 1968, logo depois de decretado o AI-5, e tive a absoluta certeza do que escrever em minha flâmula particular. Aquela que me fará acordar todos os dias até o fim da minha vida e seguir em frente no amor incondicional à minha Vera Cruz, independentemente de quem estiver com o meu país no colo.
No meio das estrelas do céu da minha bandeira, estarão para sempre escritos um nome e um sobrenome: Caetano Veloso. E, sempre que essa imagem vier à minha cabeça, imediatamente ouvirei sua voz cantando Hey Jude, e pensarei nas primeiras fotos da Terra, nas prisões injustas e no final feliz que um dia o Brasil há de ter.