Quem gosta de videogame sabe. O grande lance, explica meu filho mais novo, é o momento exato em que, depois de “muita batalha”, como ele mesmo diz, “você finalmente zera uma fase, mãe”. Dependendo do jogo, isso pode acontecer depois de construir uma cidade inteira ou de derrotar uma penca de monstros japoneses. A escolha do desafio vai do gosto de cada um. O que realmente importa é encerrar um mundo e se ver diante de outro — e, principalmente, aproveitar a interseção: os breves instantes em que essas duas sensações se cruzam.
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Lembrei dessa frase do meu caçula, dita com a poesia que só a infância alcança, quando terminei de ler Em Nome dos Pais, livro-reportagem do Matheus Leitão em que ele narra a saga de sete anos em busca do passado dos pais. Miriam Leitão e Marcelo Netto foram presos e torturados pela ditadura militar brasileira — o mesmo regime que o presidente Jair Bolsonaro diz que nunca existiu.
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Embora tudo tenha se passado antes mesmo de Matheus nascer, havia ali um verbo que era seu de direito, uma ponta que escapava aos relatos existentes, um pertencimento que lhe faltava justamente para que o episódio pudesse virar um flashback. Olhar para trás para poder olhar para a frente. Fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
Curiosa (ou infelizmente), essa premissa, que nos é ensinada até na hora de dirigir um automóvel, ainda não se estabeleceu como primeira página do manual universal de primeiros socorros (que naturalmente não existe), nem para o nosso porvir nem para o futuro do país em que vivemos.
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O Brasil, ao contrário de tantas nações que passaram por ditaduras, até hoje não foi capaz de zerar a fase 1 — há milhares de anos conhecida por gregos e troianos como a única forma de mudar de lugar no mundo: digerir o passado, retrovisor e volante juntos e de mãos dadas para que a experiência nos proteja da repetição.
Ou alguém duvida de que se tivéssemos, como sociedade, punido nossos torturadores, o presidente seguiria louvando nomes como o do coronel Brilhante Ustra? Talvez Bolsonaro jamais fosse presidente… O mesmo deveria servir para o país que está dentro de cada um, essa obra em curso que dura o tempo da nossa passagem por aqui (que, se tudo der certo, é a conta de ver os filhos dos filhos).
Quanto de nós ainda é feito do passado dos pais? Até onde devemos investigar? O que deles deve permanecer como viga — por opção — e o que “deixar no álbum”, digamos assim? Como distinguir uma coisa da outra sem todo o conhecimento possível?
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Estou em casa há cinco meses. Fora a última semana de julho, quando levei meu caçula para a casa de praia da minha mãe (sem a minha mãe, por motivos óbvios), passei todos os outros dias dentro do apartamento onde moro com meus dois meninos e meus dois gatos. Como diz minha amiga Valdete, estamos todos — ou ao menos os que podem se dar a esse luxo, na verdade — no “cantinho do pensamento”.
Escavando. Elaborando. Praticando um tempo verbal que não existia antes da Covid-19, uma espécie de “presente imperfeitíssimo” ou “pretérito de todas as horas”. Para mim, desde o dia 13 de março, a sensação térmica é a de que o futuro ficou eternamente para trás e o passado tem muito a dar aos que se dispuserem a encará-lo. Mas é preciso coragem.
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No livro do Matheus, a busca pelo delator — e depois pelo torturador — de seus pais é uma procura conciliatória. Não há nenhum tom de revanche, e até mesmo a mágoa é coadjuvante. Miriam Leitão, reconhecida jornalista de economia e política, autora de inúmeros livros, é, no livro escrito pelo filho, apenas — e esse apenas é enorme — a mãe do autor. Marcelo Netto, também jornalista bem-sucedido, é apenas o pai.
Lendo o livro, tive a impressão de que o autor não estava só pesquisando um período traumático pelo qual seus genitores passaram e que, portanto, faz parte da sua formação. Matheus estava igualmente à procura de si mesmo.
Nos longos meses em casa, procurei, assim como vários amigos, seguir o mesmo caminho. Longe das distrações que a vida corrida sempre me impôs, e ainda sentindo a morte recente do meu padrasto, entendi o motivo pelo qual vinha tendo tanto prazer em ficar sozinha: à la Candeia, andei me despedindo para me encontrar.
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Peço desculpas por algumas ausências, mas aviso aos navegantes e a mim mesma: mudei de fase no videogame, zerando duas ou três pontas soltas. Dito isso, gostaria de reforçar que temos 100 000 brasileiros menos e que o presidente segue indiferente. Não é hora de pensar em Réveillon nem em Carnaval, mas talvez a ditadura seja uma pauta atual. Em nome de pais como Miriam e Marcelo, precisamos voltar algumas casas no jogo. Do contrário, feliz ano velho, Brasil.