“O termo genocídio, por pior que pareça, me soa insuficiente”
"Não há palavra na língua portuguesa que dê conta da barbárie a que estamos assistindo", reflete a atriz e escritora na crônica da edição de março
No meio do caminho havia 2 000 corpos. Havia 2 000 corpos no meio do caminho. Escrevo esta coluna sob o peso da morte — e aqui tomo coragem para reproduzir essa sequência devastadora de números — de 2 349 brasileiros. Isso, em míseras — e, ao mesmo tempo, infindáveis — 24 horas.
Vinte e quatro horas, um dia, 1 440 minutos. Eu sei, você não aguenta mais esse assunto. Eu também não. Queria falar da Gávea, e de como há pedaços do Rio que ainda me lembram dos motivos de continuar morando aqui; do livro Vista Chinesa, comovente texto da Tatiana Salem Levy sobre um episódio de estupro sofrido por uma carioca corajosa e inspiradora (e de como a arte pode ressignificar nossas dores); e, por último, queria falar também do amor especial que sempre dediquei ao mês de março, e que desta vez — Tom Jobim que me perdoe — ainda não veio.
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Havia 2 000 corpos no meio do caminho. De fevereiro de 2020 pra cá, perdemos mais de 270 000 conterrâneos. Em um ano de pandemia — lembro do 13 de março como lembro do 11 de setembro, com todos os detalhes — já passamos por várias temporadas dessa série macabra, mas, como o último episódio ainda parece um sonho distante, sugiro que nos tornemos todos roteiristas, antes que percamos de vez o pouco que nos resta de humanidade.
Moro ao lado de uma escola. A novidade deste mês foi vê-la em atividade. Mudei há poucos meses, e estava acostumada com a vista de pátio e quadra vazios. A chegada das crianças — e são meninas e meninos de 2, 3, 4 anos — transformou minha paisagem externa e interna. Sei que o assunto é controverso, e muita gente séria é contra o retorno das aulas presenciais, mas eu tenho vontade de chorar de alegria toda vez que vejo os pequenos correndo e gritando no recreio — em vez de sozinhos, em casa, diante de uma tela de computador.
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Desde que voltei a trabalhar, em fevereiro, é como me sinto. Nas gravações da segunda temporada da série Desalma, da Globoplay, o protocolo é rígido. Além da máscara, todos no estúdio usam macacões por cima da roupa pessoal (e também aquela viseira de plástico que faz uma barreira na frente do rosto e que só atende por seu nome em inglês). Todos, menos nós. Testados mais de uma vez por semana, os atores têm a sorte de, ao menos nos instantes em que as câmeras estão ligadas, fingir que o mundo ainda é mundo. Eu me sinto uma criança no recreio depois de dois tempos seguidos de matemática.
“O presidente não é capaz de estar à frente de um país, com ou sem pandemia. A diferença é que, diante da Covid-19, sua incapacidade mata, porque vem acompanhada de arrogância”
Agora, no entanto, mais do que nunca, é hora de sermos adultos. Pouco importa quem votou ou não nesse sujeito, essa conta fica pra depois. A água chegou à cintura, 2 000 pessoas estão morrendo todos os dias na cadeira ao lado. Somos a maior média de mortes diárias em todo o mundo, uma espécie de campanha anti-Pelé e João Gilberto enterrando futebol e violão cada vez mais fundo.
Não há palavra na língua portuguesa que dê conta da barbárie a que estamos assistindo. O termo genocídio, por pior que pareça, me soa insuficiente. Jair Bolsonaro não planeja exterminar esse ou aquele grupo específico de pessoas, etnias ou culturas — embora, mais uma vez, Brasil sendo Brasil, os pobres estejam, como há 500 anos, sofrendo mais do que os ricos. O presidente simplesmente não é capaz de estar à frente de um país, com ou sem pandemia. A diferença é que, atualmente, diante da Covid-19, sua incapacidade mata, porque vem acompanhada de arrogância.
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Na peça Um Inimigo do Povo, do norueguês Henrik Ibsen, que fiz com Domingos de Oliveira vinte anos atrás, há uma frase, a respeito da democracia, que sempre questionei e que hoje me parece evidente: “O direito pertence à inteligência”. E a inteligência, que, obviamente pode ser traduzida de inúmeras formas além da acadêmica, nesse caso em particular, de 2021, tem um único e indiscutível nome: ciência.
Miguel Nicolelis, neurocientista e voz comprometida nas previsões sobre o novo coronavírus no Brasil desde o início, tem defendido com veemência um lockdown absoluto nos próximos 21 dias. Além dos colapsos hospitalar e funerário, Nicolelis fala de um colapso da civilização. “Não há jeitinho na guerra”, repete.
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Estamos na metade do mês de março. O ano é 2021. Meu filho mais velho faz 18 anos no próximo dia 30 — mesmo dia em que seu pai se vacina —, o outono vem chegando com a sua luz suave, as crianças da escola vizinha correm atrás da infância perdida. Mas há 2 000 corpos no meio do caminho.
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