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Do Vidigal a Antares, cultura muda o cotidiano de comunidades cariocas

Iniciativas como Nós do Morro e Marginow revelam talentos e transformam vidas

Por Maria Lins e Larissa Nascimento*
Atualizado em 6 jan 2023, 14h45 - Publicado em 5 jan 2023, 15h08
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  • Iniciativas culturais exercem ao menos dois benefícios expressivos em comunidades do Rio. Implantados na maioria das vezes graças a esforços conjugados de moradores, sem apoio do poder público, revelam talentos locais, frequentemente à margem da indústria do entretenimento, e transformam a vida dos participantes e de seu entorno.

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    A companhia de teatro Nós do Morro, criada em 1986, no Vidigal, Zona Sul, e a biblioteca Marginow, mais recente, em Antares, Zona Oeste, ilustram a dimensão sociocultural desses incentivos às diversas formas de arte. Nasceram de esforços coletivos, abnegados, para promover a cultura também como agente de afirmação e transformação comunitária.

    Fundado lá se vão 36 anos, o Nós, como é chamado, nasceu do desejo do jornalista Guti Fraga de montar um polo artístico na favela onde morava desde pequeno. Assistente da atriz Marília Pêra, encantou-se com os espetáculos da Broadway, em Nova York, nos anos 1980. Ao voltar para o Rio, pensou: “por que não fazer isso aqui também?”.

    O Vidigal é um histórico celeiro artístico. Relativamente próximo à sede da Globo, no Jardim Botânico, abrigava muitos funcionários da empresa. Ali criou-se, assim, uma tradição de alugar ou vender apartamentos para artistas. 

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    Foto mostra grupo de teatro com jovens ensaiando
    Nós do Morro: são 36 anos de trajetória e transformações (Maria Lins/Arquivo pessoal)
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    Inicialmente o Nós do Morro era um grupo pequeno, formado por nove integrantes, com o propósito de fazer arte. Montava esquetes em estilo talk-show. Tal como Chacrinha, Guti distribuía brindes para aqueles prestigiavam as apresentações. 

    “Esses brindes vinham por meio do comércio da comunidade. Era o mais interessante para a gente. Trabalhar a formação da plateia, trabalhar a conscientização da comunidade, principalmente do comércio, sobre o quão importante era esse projeto aqui dentro”, conta Marcelo Mello, um dos diretores do Nós. 

    Aos poucos, a companhia evoluiu. Era necessário o espaço emprestado de um colégio para guardar materiais dos shows, figurinos. Certo dia, quando a prefeitura chegou por lá, recorda Mello, “já tinha um teatro armado, o mesmo que existe até hoje”. 

    Foto mostra diretor de teatro; Ele usa camisa azul e apoia as mãos na cintura
    Marcelo Mello: um dos diretores do Nós do Morro (Larissa Nascimento/Arquivo pessoal)

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    O Nós hoje realiza as atividades em dois espaços: o Teatrinho e o Casarão. O curso de teatro já chegou a ter 18 disciplinas, como História do Teatro, Teatro, História do Cinema, Cinema, Edição, Dança Contemporânea, Dança de Salão, Dança Afro, Capoeira, Dança afro, Música, Canto. 

    O Nós chegou a ter apoio financeiro da Petrobras, mas atualmente não recebe verba de instituições públicas ou privadas. Vive de doações e de participações eventuais em editais como o Foca (Fomento à Cultura Carioca). Mello pondera:

    “Quando a gente tinha o apoio da Petrobras, foi uma época boa financeiramente. Mas percebi que muitos alunos deixavam de fazer coisas primordiais, como varrer o ambiente e ajudar na montagem, porque tinha gente fazendo para eles. Eles chegavam como se chega em qualquer outro espaço, atuavam, faziam a aula e iam embora. Não tinham relação mais estreita com o espaço, com as coisas. Hoje eles fazem tudo. A relação é completamente diferente”. 

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    O grupo já participou de grandes produções do cinema brasileiro, como o premiado filme Cidade de Deus, de 2002, dirigido por Kátia Lund e Fernando Meirelles, que projetou internacionalmente o Nós. Segundo Mello, profissionais e egressos da companhia se envolvem de maneira expressiva com a produção audiovisual do Rio”. 

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    Em 2023, o Nós lança seu primeiro longa: A Festa de Leo, dirigido por Luciana Bezerra e Gustavo Mello. Para Mello, é igualmente gratificante acompanhar atrizes e atores que desenvolveram carreiras consistentes e transformaram suas vidas a partir do grupo do Vidigal:

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    “Quando começamos, não tínhamos ideia de onde poderíamos chegar. Era muito mais uma necessidade de fazer arte, de produzir arte, do que uma vaidade ou coisa parecida. Muitas pessoas que apostaram nesse sonho, que vieram aqui e trabalharam, viraram atores e técnicos de audiovisual. Hoje em dia, quando vou filmar num set, sempre encontro alguém da gente. Isso é maravilhoso”.

    A vontade de transformar vidas guia também a Biblioteca Marginow, em Antares, Santa Cruz, na Zona Oeste. Foi fundada pelo escritor e roteirista Jessé Andarilho, de 41 anos. Converteu um posto policial desativado num lugar de incentivo à leitura numa região outrora historicamente castigada e estigmatizada pela violência. 

    A iniciativa tenta compensar um pouco a ausência de espaços literários na comunidade, diz Jessé. O escritor aproveitou uma oportunidade despontada no fim de 2019, quando recebeu ligação de uma moradora do Leme decidida a doar uma banca de jornal ociosa. No mesmo dia, arrumou um caminhão velho para transportar a futura biblioteca do Leme até Antares

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    Antes mesmo de ativar o espaço, Jessé já recebera doações de livros. Mas só pôde inaugurar a Marginow depois de concluir as etapas burocráticas com prefeitura, associação de moradores, Conselho de Segurança, 27º Batalhão, Gabinete do Estado.

    A pandemia dificultou o uso inicial do espaço. Em meio muito álcool e muita máscara, e várias doações, as salas do antigo posto policial foram aos poucos ocupadas por livros e gente. Hoje a equipe da biblioteca reúne onze moradores. A trajetória bem-sucedida enfrentou diversos obstáculos. Jessé exemplifica: 

    “Um dos problemas para montar uma biblioteca comunitária é que as pessoas acham que, por ser comunitária, aceitamos qualquer coisa. Então as pessoas doam livro rasgado, incompleto, que ninguém vai usar, sabe? Além disso, nos deparados com uma questão complexa: o alto índice de analfabetismo da região”.

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    O nome “Marginow” é inspirado no livro Fiel, primeira publicação de Jessé, considerado por muitos uma “literatura marginal’’. A ideia do escritor era ressignificar o conceito original: “Quando a gente mora na favela e escreve, chamam de literatura marginal. Mas o meu marginal é diferente: é trazer artistas da margem para o agora: ‘margi’, de margem, e ‘now’ de agora (em inglês)”. 

    O projeto inicial se tornou um instituto que abriga várias outras iniciativas, como o Sarau Marginow e Slam Marginow, com apresentação de poesias. Reforçam o objetivo comum de estimular a leitura, a produção cultural, a construção de futuros.

    Um dos momentos mais marcantes na história da Biblioteca, lembra Jessé, aconteceu num dia comum. Ele presenciou uma mãe, ao ralhar com a filha, dizer: “você vai ficar de castigo e por uma semana: não vai poder ir à biblioteca!”. 

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    Para o escritor, esse momento simboliza o afeto, a alegria, que as crianças têm de frequentar aquele espaço antes ou depois da escola. Antigamente, completa ele, com orgulho, o castigo seria ter de ir à biblioteca. 

    Durante a temporada de isolamento, na pandemia, a biblioteca era o único lugar da comunidade de aprendizado e incentivo à cultura ao qual as crianças tinham acesso. Além das ações voltadas à literatura, a casa também oferece mesa de pingue-pongue, bola de futebol e exibição de filmes no telão, em frente do qual muitos adolescentes e crianças sistematicamente se reúnem.

    *Maria Lins e Larissa Nascimento, estudantes de Jornalismo da PUC-Rio, com orientação de professores da universidade e revisão final de Veja Rio.

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