Durante a Rio 2016, 45 dos mais importantes chefs do mundo cozinharam na cidade. Estavam nesse dream team o italiano Massimo Bottura, à frente da Osteria Francescana, eleito o melhor restaurante do planeta, e o francês Alain Ducasse, detentor de dezenove das cobiçadas estrelas do Guia Michelin. Todos passaram ao largo da agenda vip da Olimpíada. As celebridades dos fogões suaram o jaleco em um prédio da Lapa por 38 dias para servir a população carente das redondezas, uma clientela sem condições mínimas de pagar pelo menu oferecido. O grupo ilustre de cozinheiros inaugurou em grande estilo o Refettorio Gastromotiva, iniciativa concebida por uma parceria da ONG Food for Soul, de Bottura, com a jornalista Alexandra Forbes e a ONG Gastromotiva, de David Hertz, incumbido de administrar o espaço pelos próximos dez anos. Na empreitada inicial, 6 toneladas de alimentos que iriam para o lixo foram transformados em receitas de alta gastronomia, arrumadas em 9 000 pratos e servidas para 3 000 pessoas em situação de risco social. A decoração do espaço contou com contribuições do artista plástico Vik Muniz, dos designers Humberto e Fernando Campana e do iluminador Maneco Quinderé.
O projeto que parece um sonho, realizado neste 2016 de tantas dificuldades, é o momento mais vistoso de uma trajetória que começou há dez anos, quando Hertz fundou a ONG Gastromotiva, dedicada à capacitação profissional de jovens para o mercado de alimentação. Criada em São Paulo, a instituição hoje marca presença em quatro cidades brasileiras e na capital do México. Há programas em desenvolvimento na Arábia Saudita e na África do Sul. A frente carioca, iniciada em 2013, já formou 800 jovens, em cursos apoiados por trinta restaurantes da cidade — 80% deles estão empregados. As aulas englobam habilidades básicas de cozinha, confeitaria, panificação e ecogastronomia, além de matérias como cidadania, higiene e segurança alimentar. “Nosso objetivo é transformar a vida dessas pessoas e fazer com que elas transformem a de outras”, conta Hertz, que acaba de se mudar para o Rio.
Oriundo de uma família judaica tradicional de Curitiba, ele perdeu a mãe com 1 ano. Aos 18, em busca de um rumo, foi morar em um kibutz em Israel. Depois, caiu no mundo. Por sete anos, rodou o sudeste asiático, a China, a Índia, a Inglaterra e o Canadá. Na Tailândia, despertou para a comida. “Fiquei enlouquecido com o aroma nas ruas”, lembra. De volta ao Brasil, estudou gastronomia no Senac e, na capital paulista, trabalhou no bufê Fasano. O sonho aproximava-se, mas ainda não estava nítido. “Nunca pensei em ser chef”, revela. Surgiu então o convite para montar um curso de cozinha no Instituto Lina Galvani, em 2004, na favela do Jaguaré, na Zona Oeste de São Paulo. E, lá, deu-se o contato definidor com Uridéia Andrade da Costa. A jovem, então com 19 anos, sobrevivente de três tentativas de suicídio, disse ter achado uma razão de viver no curso de Hertz. O encontro foi tão marcante que os dois se associaram na Gastromotiva, uma forma de multiplicar os efeitos do curso. “Falei para ela: você conhece o lado de lá e eu conheço o daqui. Vamos construir pontes”, lembra o cozinheiro. Uridéia, hoje à frente da própria empresa, já contou sua história de vida nas Nações Unidas. Hertz também é frequentemente convidado a viajar para dividir sua experiência — no Fórum Econômico Mundial, em 2012, foi nomeado “jovem líder global”. A ponte os levou longe e, ainda bem, chegou até nós.