Em uma salinha nos fundos da igreja — que não será identificada aqui — ocorrem as reuniões semanais do grupo MADA, Mulheres que Amam Demais Anônimas. Lá dentro, encontram-se cadeiras dispostas em círculo, cartazes com os passos e tradições da irmandade, e cerca de quinze mulheres de diferentes credos, idades, classes sociais, cor e aparência física, mas uma única coisa em comum que as levou até ali: o risco de amar demais.
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“Amar demais” é como este programa de recuperação identifica a dependência emocional, uma adicção tão nociva e fatal quanto a química, que acomete a população feminina acima de qualquer outra. Segundo o Dossiê Mulher 2018, as mulheres representam cerca de 67% das vítimas de violência psicológica no Brasil, 70% das vítimas de invasão de domicílio e 65% das vítimas de lesão corporal dolosa (dados do PMERJ).
Na salinha dos fundos da igreja, também era possível ver cartazes nas paredes com os 12 Passos e 12 Tradições do MADA, adaptados do Alcoólicos Anônimos (AA), programa de recuperação de dependentes químicos do álcool. Cada reunião aborda um dos Passos ou uma das Tradições como foco principal, mas sempre começa com a Oração da Serenidade. Aquelas quinze mulheres tão diferentes conseguiram recitar, em uma só voz e com fervor, as pequenas linhas:
“Concedei-nos, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos modificar, coragem para modificar aquelas que podemos e sabedoria para distinguir umas das outras”
A oração não está ali por acaso e nem busca atender uma função religiosa. A necessidade desesperadora de controlar seus parceiros/as e relacionamentos, mascarando seus esforços para controlar pessoas e situações, mostrando-se “prestativa”, é uma das características da mulher que ama demais (disponível no site oficial do MADA).
Assim como o dependente químico, a dependente emocional possui um perfil de personalidade específico.
Dependência química x afetiva: as semelhanças que existem
Quando se está apaixonado, o organismo ativa as mesmas regiões que o dependente químico quando faz uso do entorpecente. É o que explica a psicóloga e psicoterapeuta Cátia Rodrigues, de São Paulo:
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“Se apaixonar é ficar entorpecido de amor, os poetas falam disso. É uma delícia sentir aquele frio na barriga e as borboletas no estômago. Você recebe uma bomba de hormônios e neurotransmissores associados ao prazer no corpo, como a ocitocina e a adrenalina, por exemplo. Isso também acontece com o dependente químico quando faz uso do entorpecente. O dependente emocional é dependente dessa sensação”.
A psicóloga expõe que, da mesma forma que os entorpecentes químicos (como o álcool, o cigarro etc), quanto mais alguém “faz uso”, menos potente fica a sensação de bem-estar e prazer das primeiras vezes. Com isso, o dependente emocional entra em ciclos compulsivos e vai procurar relações cada vez mais intensas com as pessoas. Assim como o dependente químico vai buscar maiores quantidades da substância a que faz uso.
“Nessa relação, há uma presença de brigas, rupturas, agressões e, logo em seguida, os comportamentos que fazem com que esse jogo de hormônios e neurotransmissores no corpo voltem a dar a sensação de bem-estar e de plenitude, como sexo, pedidos de desculpas, promessas de mudança e por aí vai”, acrescenta Cátia Rodrigues. Por essa razão, mulheres que amam demais que não estiverem em tratamento têm o costume de se expôr a envolvimentos amorosos cada vez mais perigosos.
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Como surge a dependência emocional
A dependência afetiva pode surgir a partir de causas genéticas, sociais e, especialmente, relacionais. Cátia depende que a exposição a relações familiares tóxicas podem ser bem mais determinantes para formar uma mulher que ama demais que os outros fatores.
“Elas não conseguem diferenciar o conceito de sofrimento do conceito de amor, nem conseguem perceber o abuso dos companheiros, uma vez que, muito provavelmente, as relações familiares que marcam a conceituação delas do que é um relacionamento já são abusivas”, ressalta.
É o caso de M., uma MADA que não será identificada aqui. Desde criança, ela observa a mãe sendo cuidadora do pai e oferecendo pouca atenção para ela. “Minha mãe se responsabilizava como mãe e também como pai na nossa família. Eu só tenho um irmão mais novo, que nasceu doente e recebia atenção dela também. Então eu sofria muito de solidão, carência… Cresci muito magoada e raivosa”, conta.
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“Tenho muita sensibilidade e por conta da dependência, fui muito mal direcionada na vida, sabe? Com muito custo, consegui terminar o ensino médio. Fiz vários cursos técnicos e nunca consegui ficar mais de dois anos em uma empresa. Tenho impulsos que me fazem desistir de tudo e fazer mudanças radicais em qualquer setor de minha vida”.
A psicoterapeuta Cátia Rodrigues acredita que as mulheres possuem mais propensão à dependência emocional do que os homens, por conta do machismo marcado nas estruturas sociais e relações de poder. “Somos extremamente patriarcais, em termos de nação, de Brasil, e muito machistas. O processo educacional da menina, desde a tenra idade, já oferece para ela a primeira boneca e a família diz ‘cuide da sua filhinha’. Essa criança ainda nem sabe falar, mas já começa a compreender que o papel social dela é cuidar. A sua orientação é de serviço”.
Como identificar uma mulher que ama demais
De acordo com a psicoterapeuta Cátia Rodrigues, dependentes emocionais e afetivas são pessoas que estabelecem relações obsessivas com seus parceiros. Esses indivíduos, em grande maioria mulheres, sentem que a vida não tem sentido sem a presença do companheiro/a amoroso/a, desde as atividades mais banais às mais complexas. “Elas não conseguem se divertir sem a presença do outro e costumam assumir mais responsabilidades no relacionamento”, defende a psicóloga.
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A mulher que ama demais também possui uma autoestima criticamente baixa, e no fundo não acredita que mereça ser feliz. “Ao contrário, acredita que deve conquistar o direito de desfrutar a vida” (site oficial do MADA). A psicóloga acrescenta que as pessoas emocionalmente dependentes possuem uma desconexão com o próprio corpo e suas sensações. Por essa razão, não gostam do que veem no espelho e, em níveis mais profundos, adoecem fisicamente com frequência.
“É uma relação traumatizada com o corpo, muito manifestada por somatizações. E elas [as mulheres que amam demais] adoecem fisicamente por estresse. Veja bem, todos nós podemos sofrer desses adoecimentos emocionais vez ou outra, mas as pessoas com dependência afetiva fazem isso como modo de vida”, afirma a psicoterapeuta.
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Este conteúdo integra o conjunto transmídia que reúne produções em texto, áudio e vídeo inspiradas nas Metas do Milênio. Essas produções foram feitas por estudantes de Comunicação da PUC-Rio, com a orientação dos professores Alexandre Carauta, Chico Otavio, Creso Soares Jr, Felipe Gomberg, Luís Nachbin e Mauro Silveira.
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*Morgana Leandro, estudante de Jornalismo da PUC-Rio, com orientação de professores da universidade e revisão final de Veja Rio.