Com todos os olhares do planeta voltados para as reluzentes arenas esportivas erguidas no leste de Londres, não há outra cidade fora da Inglaterra que experimente a atmosfera olímpica com tanta intensidade quanto o Rio. Cada detalhe das cerimônias, das competições, do aparato de segurança e das soluções de transporte tem sido acompanhado com avidez pelos cariocas, tentando antecipar o que viveremos por aqui quando chegar a nossa vez de comandar a festa. Organizar uma Olimpíada é uma operação tão complexa que os atuais anfitriões costumam definir os Jogos londrinos como o maior desafio logístico vivido pelo país desde a sofrida vitória sobre a Alemanha nazista, em 1945. Tal comparação dá a dimensão da tarefa, que mobiliza uma miríade de atores, todos em profunda sintonia com relação ao planejamento, à execução do projeto, ao cumprimento de prazos e ao respeito aos orçamentos. No entanto, na largada rumo a 2016, tal sinergia, por enquanto, aparenta ser mais retórica do que prática por aqui. As obras mal foram iniciadas e já começam a pipocar exemplos surreais de problemas que, claramente, poderiam ter sido evitados. “Tivemos grandes avanços em inúmeras áreas, mas, infelizmente, a palavra gestão ainda não existe no vocabulário brasileiro”, resume o professor Lamartine da Costa, especialista em estudos olímpicos da Universidade Gama Filho e da East London University.
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A pouco mais de 1?400 dias da cerimônia de abertura no Rio, as diversas instâncias envolvidas no esforço olímpico ainda estão por demonstrar a coordenação e o planejamento necessários a um evento de tal porte. Para qualquer lado da cidade que se olhe, há episódios ligados direta ou indiretamente aos Jogos que comprovam tal situação. As aberrações vão dos novos trens do metrô, que não couberam nos túneis e exigiram reformas nas estações, à tardia descoberta de uma estrutura podre no teto do Maracanã, palco de algumas das principais competições (veja o quadro nas págs. 20 e 21). Na área do futuro Parque Olímpico, em Jacarepaguá, a instalação destinada às disputas de ciclismo tornou-se pivô de uma polêmica bizantina que deve se estender pelos próximos meses. Construída em 2007 para os Jogos Pan-Americanos, a pista foi rejeitada há duas semanas pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). A entidade recomendou a demolição da arena e sua substituição por uma nova. Ao receber a avaliação, a Empresa Olímpica Municipal, responsável pela coordenação das obras, acatou a decisão de imediato. Tal posição estapafúrdia gerou tamanho mal-estar que o prefeito Eduardo Paes interveio pessoalmente, vetando a derrubada, enfrentando o COI e desautorizando o órgão que ele mesmo criou. “É inaceitável a hipótese de demolição. Estamos licitando um projeto para estudar a possibilidade de adaptar o velódromo”, diz o prefeito. “Não quero saber quem errou no passado. É um escândalo destruir um equipamento novo que custou 14 milhões de reais.”
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A organização de uma Olimpíada é um projeto complexo que reúne um intricado organograma formado por agentes nacionais e internacionais pertencentes à esfera pública e privada. Para pôr um evento dessa magnitude de pé, é necessário que prefeitura, governo do estado, governo federal, comitê olímpico e comitê organizador, fornecedores e prestadores de serviço estejam perfeitamente integrados em suas funções e atribuições a fim de atender a todas as demandas dos Jogos. Autoridade máxima na empreitada, o COI tem a palavra final em absolutamente tudo, tem inclusive o poder de destituir a cidade escolhida como sede, caso constate que ela não está cumprindo as promessas feitas na candidatura ao posto. No mundo ideal, esse microcosmo formado por profissionais de diferentes áreas deveria trabalhar em perfeita afinação para garantir a realização da competição e cuidar de seu legado. Na realidade, as coisas nem sempre funcionam assim. “Na estrutura brasileira, a principal entidade responsável pela articulação dos diferentes grupos, a Autoridade Pública Olímpica, até agora teve um caráter meramente decorativo e tem se mostrado ausente da organização”, diz Ricardo Araújo, economista especializado em gestão de instalações esportivas e grandes eventos. Para efeito de comparação, quando os fogos de artifício ainda espoucavam na cerimônia de abertura da Olimpíada de Pequim, no estádio Ninho do Pássaro, em 2008, as duas empresas responsáveis pela organização em Londres já estavam funcionando a pleno vapor havia dois anos, em total sintonia, e uma terceira, voltada apenas para a gestão do legado acabava de ser criada. Os projetos das instalações estavam todos prontos, os orçamentos definidos e as obras de infraestrutura no terreno que receberia os principais equipamentos esportivos também seguiam avançadas. Por aqui, permanecem dúvidas cruciais como onde serão as partidas de rúgbi e se a Marina da Glória terá condições de receber as competições de vela.
De acordo com as escolhas feitas e os objetivos traçados por seus organizadores, cada Olimpíada tem um impacto diferente em sua cidade-sede. Londres optou por juntar as principais atividades em um único local, o East End, como forma de revitalizá-lo por completo. Por aqui, a proposta foi distribuir a ação em quatro regiões. Uma delas, a de Deodoro, na Zona Oeste, enfrenta um problema bizarro. A área, que deve receber sete modalidades esportivas e o novo autódromo, pertence ao Exército e é utilizada desde a década de 80 para treinamentos, entre eles os que incluem armas como minas e granadas. Em junho, um recruta morreu em decorrência de uma explosão misteriosa durante um teste de sobrevivência na mata que circunda o terreno. O incidente levantou a suspeita de que pudesse haver artefatos explosivos abandonados no local, o que levou os militares a abrir uma investigação e fazer uma ampla varredura, um processo que pode levar até seis meses. Com isso, a construção do autódromo, prevista inicialmente para 2009, deve demorar ainda mais para sair do papel. Tal obra é crucial para que o terreno onde funcionará o Parque Olímpico, em Jacarepaguá, hoje ocupado pela antiga pista de automobilismo, seja liberado. O contratempo dá uma dimensão das implicações que um problema isolado pode acarretar na execução de todo o projeto. “Nós não temos uma cultura para o trabalho coordenado. Ninguém percebe que uma pequena falha em uma frente específica pode ter consequências graves em todo o resto”, diz o urbanista Sérgio Magalhães.
Solavancos são comuns na montagem de um acontecimento tão grandioso, ainda mais em se tratando de um país como o Brasil, com pouca tradição de receber eventos internacionais. O risco é deixar que a mistura de inércia, falta de articulação no planejamento e demora na solução dos obstáculos se torne uma crise de grandes dimensões. No início da década passada, quando se candidatou a receber os Jogos de 2004, a cidade de Atenas montou um vasto programa de transporte público que envolvia a construção de duas novas linhas de metrô e a expansão de outras já existentes. Uma sucessão de atrasos provocados por falhas e contratempos, que incluíram até a descoberta de relíquias arqueológicas de mais de 2?000 anos no caminho dos trens, levou a um colapso no projeto – o COI foi obrigado a intervir e a reestruturar todos os planos. Da mesma forma, a instalação desastrada de uma dispendiosa cobertura no estádio olímpico, projetada pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava, por pouco não comprometeu a cerimônia de abertura. “Não acredito que o Rio corra os mesmos riscos, mas sem dúvida a experiência grega é preciosa no sentido do que não deve ser feito”, diz a arquiteta americana Eva Kassens-Noor, especialista em planejamento de eventos olímpicos da Universidade de Michigan.
Apesar das derrapadas iniciais, a empreitada carioca já acumula acertos em comparação com maus exemplos do passado, como o de Atenas ou o de Montreal, em 1976, que de tão ambicioso acumulou uma dívida que levou três décadas para ser paga. Graças ao empenho da prefeitura, obras como a revitalização do Porto e do Túnel da Grota Funda, que deixarão um legado importante para o futuro do Rio, são uma realidade. No entanto, a grande virtude apontada pelos especialistas é tomar como inspiração a experiência vitoriosa de Barcelona, em 1992, considerada um marco na história dos Jogos. Poucas cidades foram tão bem-sucedidas em coordenar uma confusa rede de concessionárias de serviços públicos, entidades governamentais e privadas e diferentes esferas de poder como a capital da Catalunha. “Eles realizaram um trabalho notável ao aproveitar o evento para renovar uma estrutura urbana envelhecida”, diz o secretário municipal de conservação, Carlos Roberto Osório, um dos autores do projeto da nossa candidatura. A ideia de dividir as atividades esportivas em quatro zonas ligadas por transportes de massa, por exemplo, veio de lá. E a da recuperação da área portuária também. Agora precisamos nos esforçar para copiar a parte mais complicada: a notável eficiência com que os espanhóis realizaram seu trabalho.