As cenas de terror e humilhação atormentaram a cabeça do medalhista olímpico durante duas décadas. Em um hotel onde estavam concentrados para disputar o campeonato brasileiro, Diego Hypólito e mais dois ginastas foram trancados em um quarto e obrigados a tirar a roupa. Aos risos, atletas mais velhos mandaram então que os meninos, à época com 12 e 13 anos, se posicionassem um ao lado do outro, de frente para eles, e escreveram com pasta de dente uma palavra no peito de cada um: “eu”, “sou”, “gay”. A sessão de tortura não parava por aí. Os garotos deveriam ficar imóveis enquanto eram fotografados pela turma de veteranos, composta de rapazes de vários clubes. Diego nunca chegou a ver aquela foto, porém sabia que ela existia e que poderia ser usada em algum momento contra ele. “Eu sentia muito medo, mas tinha vergonha de contar aos meus pais o que ocorria nessas viagens”, disse o atleta com exclusividade a VEJA RIO. “Perto de qualquer competição, eu já entrava em pânico, com receio de que algo ainda pior pudesse acontecer.” Aos 31 anos, Diego, o ginasta brasileiro mais vitorioso de todos os tempos, lembra que os treinadores tinham conhecimento do que se passava nos bastidores de treinos e provas, mas ninguém fazia nada para impedir. “Essa história é só a ponta de um enorme iceberg. A gente era muito novo, não sabia como se defender. Vários atletas com grande futuro abandonaram a carreira porque não suportaram esse horror.”
O episódio descrito só engrossa a lista de casos de abusos cometidos nos bastidores da ginástica artística brasileira e que começaram a vir à tona na última semana. Depois das denúncias contra o técnico Fernando de Carvalho Lopes, que fez parte da comissão técnica da seleção brasileira masculina de ginástica por dois anos e foi responsável pelos atletas de base do Movimento de Expansão Social Católica (Mesc), clube em São Bernardo do Campo, São Paulo, Diego decidiu revelar o inferno que viveu. “Sofro até hoje”, diz o medalhista de prata na Olimpíada do Rio, que contou em entrevista ao Jornal Nacional, na segunda (30), o grave assédio sofrido aos 11 anos. Ele estava em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, para disputar um campeonato quando, assim como no caso humilhante da foto pelado, foi obrigado a passar por outra situação pavorosa. Os veteranos, na faixa dos 16 anos, mandaram os calouros tirar a calça e pegar uma pilha besuntada de pasta de dente com o ânus. “Era uma espécie de prova. O objetivo era acertar essa pilha dentro de um tênis. Se errássemos, tínhamos de começar tudo de novo. Eu não consegui.” Diego ficou tão nervoso que teve uma convulsão e não concluiu a tarefa imposta pelos algozes. Outra modalidade de abuso era o chamado “pacu”, em que os mais velhos mandavam os calouros passar creme dental entre as nádegas para provocar ardência. “Existia um terror psicológico tão forte que, na minha primeira competição importante, levei um estilete, com medo de que isso acontecesse comigo também”, confirma o ginasta Gabriel Freitas, que treinou junto com Diego e competiu pelo Flamengo entre 1998 e 2004.
Não era somente na concentração das competições que se davam os abusos físicos e morais contra os atletas mais novos. Mesmo dentro do ginásio do Flamengo, referência na formação de atletas de alto nível, cenas capazes de aterrorizar qualquer pai e mãe aconteciam a todo momento. “A gente treinava muitas horas, nossos pais não conseguiam acompanhar o tempo todo”, diz Gabriel. A recordação mais traumática de Diego atende pelo nome de caixão da morte. Era assim que os ginastas chamavam um dos “trotes” mais corriqueiros durante os treinos, feito com a caixa de plinto, estrutura composta de vários módulos encaixáveis, usada no lugar do cavalo para treinar saltos. Como forma de punição, os meninos que chegassem atrasados, cometessem erros nas séries ou desobedecessem a alguém eram obrigados a deitar-se num desses caixotes de madeira, fechado em seguida com uma tampa. Enquanto alguém ficava em cima para não deixar que eles fugissem, outros jogavam dentro do caixão água e pó de magnésio, aquele talco usado nas mãos para evitar deslizes nos aparelhos. “Não sei quanto tempo permanecia ali preso, mas parecia uma eternidade. Quando eu saía, todo mundo estava rindo. Eu ficava muito mal, chorava muito”, conta Diego. Frequentemente isso se dava na presença dos técnicos. “Fui parar lá umas duas vezes e ninguém fez nada. Havia inclusive treinadores que estimulavam essas situações e debochavam da gente”, acrescenta Gabriel. Nessa época, o técnico da equipe masculina do Flamengo era Renato Araújo, que mais tarde se tornou treinador-chefe da seleção masculina adulta e, recentemente, se mudou para o Canadá. “Passei 24 anos no Flamengo e nunca vi isso acontecer, mas viajava muito, e naturalmente ficava ausente do ginásio”, argumenta Georgette Vidor, que foi supervisora-geral da ginástica artística do clube até 2004.
As situações vividas por Diego, Gabriel e outros atletas dessa geração evidenciam uma cultura deplorável dentro da ginástica artística que, inevitavelmente, acaba por deixar traumas irreversíveis. Com casa no Rio e em São Paulo, o medalhista olímpico, hoje em dia, só cruza de uma cidade a outra de carro — avião, nem pensar. Quando precisa competir no exterior, a saída é recorrer a ansiolíticos para conseguir embarcar em uma aeronave. Diego também tem horror a túneis e não entra em elevadores, optando sempre pelas escadas, não importa o andar. “Tenho certeza de que fiquei com claustrofobia por causa do caixão da morte. Tenho pavor de que me prendam, não consigo ficar em lugares fechados até hoje”, diz o atleta, que começou sua carreira aos 7 anos, no Sesi de Santo André, por influência da irmã, Daniele Hypólito. Embora essas histórias tenham deixado sequelas e o atormentem há duas décadas, só nesta semana Diego teve coragem de revelar à mãe parte do sofrimento que passou. “Vivia num eterno dilema. Além do constrangimento, como eu poderia contar aos meus pais tudo o que acontecia, se eles tinham se sacrificado tanto para que eu conseguisse chegar a algum lugar com a ginástica?” De origem humilde — a mãe fazia serviços de manicure dentro de casa e o pai era operário numa fábrica de pneus —, a família deixou a cidade na região do ABC paulista, a convite do Flamengo, para que as jovens promessas viessem treinar na Gávea. Nesse universo de terror relatado pelo atleta, bullying era coisa corriqueira. “Eu era chamado de cabeça de caminhão por causa do tamanho da minha cabeça, e a gente, de família Buscapé. Nós morávamos no Leblon, estudávamos em colégio particular, mas havia dia em que não tínhamos dinheiro nem para comer direito. Era tudo com bolsa, auxílio do clube ou de favor”, recorda.
A partir do escândalo de abuso sexual envolvendo o ex-técnico da seleção e do Mesc, divulgado pelo Fantástico no último dia 29, os meandros mais sombrios da ginástica artística vieram à tona. Mais de quarenta jovens até agora afirmaram ter sido vítimas de Fernando de Carvalho Lopes, dos quais dez já levaram o caso à Justiça. Petrix Barbosa, ouro nos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara, em 2011, está entre os que relataram uma dor insuportável, antes escondida. “Já acordei com ele, não sei quantas vezes, com a mão na minha calça”, descreveu Petrix. O treinador foi desligado da equipe brasileira, às vésperas da Olimpíada de 2016, por causa da denúncia feita pelos pais de um menino menor de idade treinado por ele no clube do interior de São Paulo. O episódio, que adquiriu grandes proporções nesta semana, puxou o fio de um tenebroso novelo que não se sabe até onde vai. Assim como no início das acusações contra o ex-médico da seleção americana de ginástica Larry Nassar, caso que ganhou dimensões antes inimagináveis, não param de surgir informações sobre atrocidades no universo das traves, cavalos e argolas. As condenações de Nassar, acusado de molestar mais de 100 atletas, inclusive as campeãs olímpicas Simone Biles, Gabby Doutlas e Aly Raisman, já somam 360 anos. Aqui, por enquanto, os relatos de abusos e humilhações se restringem ao universo masculino da ginástica. “Mas sabe-se que há casos de meninas que eram presas nos quartos para não sair durante as concentrações e que, sem nada para beber, tomavam água do chuveiro”, conta Diego. “Isso tudo tem de acabar.”
Um problema global
Nos últimos anos, atletas de diversos países e modalidades revelaram ter sido vítimas de abuso e assédio
MÉXICO (2004) Em 2004, Francisco Rueda, treinador mexicano de saltos ornamentais, foi afastado da seleção nacional depois das denúncias dos pais de Laura Sánchez, uma de suas pupilas. Segundo eles, a atleta, quando tinha 15 anos, era obrigada a ter relações sexuais com Rueda e sua esposa. A federação o considerou culpado por cometer “atos de depravação” e tomou a decisão de afastá-lo. O desfecho do caso, no entanto, é perturbador. Ao completar 18 anos, Laura casou-se com Rueda.
ESPANHA (2016) Quando ganhou a prata na prova de decatlo na Olimpíada de 1992, Antonio Peñalvier recebeu os cumprimentos do rei espanhol Juan Carlos. Seu preparador físico ao longo da carreira havia sido Miguel Ángel Millán, que, em junho de 2016, foi acusado de abuso sexual por outro atleta. A denúncia resultou na condenação de Millán, em dezembro daquele ano. No dia seguinte à prisão, Peñalvier declarou que tinha sido vítima dele, e outros quatro jovens relataram situações similares.
EUA (2016) Larry Nassar foi médico da seleção olímpica de ginástica dos EUA entre 1996 e 2015. Um ano após ele deixar o cargo, o jornal americano Indianapolis Star publicou a notícia de que duas ginastas o acusavam de acariciar seus seios e genitais durante tratamentos médicos. As denúncias encorajaram outras mulheres. Até o fim de janeiro, 265 atletas haviam relatado ter sido vítimas de abuso sexual, entre elas Simone Biles, ganhadora de quatro ouros na Rio 2016.
ARGENTINA (2018) No último dia 21 de março, veio à tona o caso de abuso sexual de menores no clube de futebol Independiente. De acordo com a denúncia, um atleta de 19 anos aliciou cerca de vinte colegas com idade entre 14 e 16 anos, que viviam no mesmo alojamento, para que fizessem programas com homens mais velhos em troca de dinheiro. As revelações indicaram que o caso não era isolado e fazia parte de um esquema maior, que envolvia árbitros e dirigentes da modalidade no país.
INGLATERRA (2018) Em fevereiro, o ex-treinador Barry Bennell foi condenado a trinta anos de prisão por abusar de doze jovens com idade entre 8 e 15 anos. O inglês, hoje com 64 anos, foi funcionário do Crewe Alexandra, equipe da quarta divisão inglesa, durante as décadas de 80 e 90. No entanto, era como representante do Manchester City, do Chelsea e do Stoke City que acabava entrando em contato com meninos pobres que sonhavam com um futuro melhor para a família por meio do futebol.
*Colaboraram Saulo Pereira Guimarães e Dilson Júnior