A pandemia passou, mas seus efeitos nas engrenagens da economia do Rio ainda se fazem sentir e pesam no bolso. O cenário ainda trepidante leva as famílias a se debruçar sobre as contas do mês e tomar decisões, nem sempre simples, para aliviar o orçamento. E assim uma parcela crescente da classe média, diante de mensalidades escolares cada vez mais altas, vem optando por matricular os filhos em escolas públicas. A boa notícia é que esse universo em que eram raríssimas as ilhas de excelência, entre elas o colégio Pedro II e os de aplicação da UFRJ e da Uerj, conta com mais expoentes do bom ensino, mesmo que a maioria das instituições não tenha superado gargalos históricos. Velhas mazelas, como falta de professores e de infraestrutura, seguem castigando boa parte das redes estadual e municipal, mas, garimpando aqui e ali, é possível encontrar opções em que viceja a boa educação. “Observo o surgimento de propostas inovadoras, com mais unidades investindo em horário integral, intercâmbio intercultural e habilidades técnicas”, sublinha a especialista Claudia Costin, presidente do Instituto Singularidades, de formação de docentes.
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O fenômeno de revoada das escolas particulares já tem envergadura: só os 1 233 colégios estaduais receberam mais de 120 000 desses estudantes nos últimos cinco anos. Na seara municipal, de 2021 para cá, são quase 70 000 novos alunos egressos de unidades privadas — 13 000 deles no atual ano letivo. “O poder aquisitivo das pessoas não foi completamente recuperado”, avalia Lucas Werneck Machado, do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Município, que representa uma fatia das particulares. “Fechamos 2023 com um número de matrículas 20% inferior ao de 2019”, diz. A inadimplência, medida entre fevereiro e outubro, cravou 17%, longe dos 12% do mundo pré-Covid. “Sou mãe solo e estava numa situação financeira complicada”, lembra a agente de viagens Elaine Maciel, depois que a filha Leticia, de 12 anos, perdeu a bolsa numa instituição privada e foi estudar na Escola Municipal Gonçalves Dias, em São Cristóvão. “Lá, o professor de matemática percebeu o potencial dela e a incentivou, inclusive com uma monitoria”, conta.
Como milhares de estudantes, Letícia, que cursa o 7º ano, encontrou incentivo na Olimpíada Carioca de Matemática (OCM), que no ano passado lhe rendeu um smartphone como prêmio. Criada em 2021 nos moldes da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep), em parceria com o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), a OCM dá um empurrão e tanto a alunos de variadas idades no município. A ideia inicial era atrair 100 000 para participar de uma prova anual, a fim de estimular a aprendizagem e rastrear talentos — atualmente, são 400 000. Os vencedores ganham viagens à Disney e à Nasa, nos Estados Unidos, um atrativo a mais para aderir à olimpíada que tanto estimula a mente. “Já levamos 300 alunos para o exterior, fora as medalhas concedidas a 3 000 estudantes”, calcula o secretário municipal de Educação, Renan Ferreirinha, ele também fruto da rede pública. Dono de seis láureas da Obmep, que acumulou antes de se formar com bolsa integral na prestigiada Universidade Harvard, Ferreirinha bate na tecla de que a escola precisa ser um lugar convidativo às novas gerações. “O aluno precisa querer estar lá”, defende.
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Evidentemente que fazer girar a manivela do ensino de qualidade exige investimento e boas cabeças. Na busca por avançar, colégios públicos de todas as regiões vêm ampliando seu leque: uma leva oferece mais línguas estrangeiras e esportes e disponibiliza tecnologia de forma criativa. Hoje, já são 26 unidades estaduais das chamadas E-Tecs (voltadas justamente para tecnologia e sustentabilidade), trinta vocacionadas (ensinam inglês e espanhol, além de focar esportes e música) e 27 classificadas como interculturais (em parceria com consulados e institutos de países como Alemanha e China). A ideia é despertar o interesse da criançada e dos jovens, não raro desconectados da sala de aula. “A escola particular que abre essas possibilidades aos alunos é cara demais, muitas vezes inacessível à própria classe média. Por isso, ao migrar da rede privada para a pública, a maioria dos pais vai atrás desse tipo de colégio”, observa a secretária estadual de Educação, Roberta Barreto.
Abrir a janela do aprendizado pode se dar pelos mais diversos caminhos. Foi de olho nas lições de robótica, que desfrutam de alta reputação, que as estudantes Grazielle Cardoso e Catarina Lima Veloso acabaram matriculadas no Bernardino Mello Junior, em Nova Iguaçu, entre os dez mais procurados do estado. Tamanho entusiasmo colheu ótimo resultado, e elas foram chamadas para integrar a equipe de competição do colégio, a Spartan Team, campeã do Fira Brasil, um dos mais relevantes torneios de robótica do país. Agora, estão classificadas para o Mundial que acontece neste ano, em agosto. “Sempre me interessei por matemática e tecnologia e conversei com minha mãe sobre minha vontade de fazer o ensino médio no Bernardino. Vi ali uma oportunidade”, relata Grazielle, 17 anos, no 2º ano. “Tenho certeza de que não perdi nada ao migrar para a rede pública. Ao contrário. O ensino é de qualidade”, arremata Catarina, 18 anos, que fez o Enem e garantiu uma vaga na medicina veterinária.
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Segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), responsável pelo Pisa, avaliação internacional que mede habilidades e competências adquiridas pelos jovens, um fator importante na trilha do bom ensino é o estudo em tempo integral. “As escolas de horário estendido, como as interculturais e as E-Tecs, alcançam praticamente o dobro da nota das demais”, ressalta a secretária Roberta Barreto. No estado, o percentual dessas unidades chegou a 36%, enquanto no município, entre 2021 e 2023, saltou de 30% para 46%. “O que nós chamamos de escola em tempo integral os outros países chamam de escola, já que todo mundo tem”, enfatiza Ferreirinha. Atualmente, são 33 as instituições bilíngues no município, a maioria de inglês e francês, e duas de mandarim a partir deste ano, sem contar os doze ginásios educacionais olímpicos (GEO), voltados a estudantes com aptidões esportivas, e os 75 experimentais tecnológicos (GET), com laboratórios maker, em que o aluno aprende manuseando ferramentas e produzindo projetos. A meta para 2024 é expandir os GETs para 200 unidades.
O afluxo desses alunos egressos da rede particular traz um efeito positivo aos colégios públicos. “A classe média tende a cobrar mais, o que acaba fazendo a qualidade subir”, destaca Roberta. Avançar no ensino é tarefa de casa fundamental para o país e, em particular, para o Rio, que vem surgindo no pelotão de trás no ranking dos estados brasileiros, entre os últimos da turma. Está comprovado que o mais eficiente caminho para guindar a população da desigualdade e da pobreza é oferecer boa educação a todos, com um sistema público capaz de alçar a criançada a um patamar de conhecimento que as permita crescer e aparecer. Uma lição que não tem preço.