“Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar / Por causa disso a minha gente lá em casa começou a rezar / E até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada / Por causa disso, nessa noite lá no morro não se fez batucada”. No samba E o Mundo Não Se Acabou, de Assis Valente, sucesso de Carmen Miranda em 1938, o compositor lamentou o silêncio dos tamborins.
A situação guarda semelhanças com o mundo do samba de hoje: em razão de uma praga, literalmente – a pandemia -, a festa momesca de 2021 também sentirá o baque. Os desfiles da Sapucaí foram oficialmente suspensos, o que não põe um ponto-final na história.
As escolas ainda sonham com a farra completa alguns meses depois, quando a aguardada vacina chegar. “Fala-se no feriado de São Jorge, emendado com o de Tiradentes, em abril, que pode criar uma sequência de cinco dias para os desfiles”, adianta a porta-bandeira Lucinha Nobre, da Portela, irmã de Dudu Nobre, compositor de inúmeros sambas-enredo. “Estamos ansiosos”, diz.
A decisão, baseada na cartilha de prevenção ao vírus para frear as aglomerações, faz tremer uma indústria no Rio que, só neste ano, reuniu 10 milhões de foliões e gerou 4 bilhões de reais em receitas para a cidade. Para se ter uma ideia das engrenagens que move, cerca de 5 000 pessoas trabalharam na produção da festa só na Sapucaí. O mundo do samba é unânime: não há como pular o Carnaval de 2021. Mas sabe-se que será uma dura corrida de obstáculos.
Além da questão sanitária, o novo cronograma precisa driblar datas já reservadas para outros eventos, como os Jogos Olímpicos de Tóquio (de 23 de julho a 8 de agosto), prioridade da TV, e não ser perto do fim do ano. Já pensou comprometer o desfile de 2022?
No meio da indefinição, muita gente anda caindo no samba do jeito que dá – abraçando as lives -, e assim se mantém na ativa e ganhando algum dinheiro. “Fazemos esses shows pela internet que é o que nos resta”, desabafa Dudu Nobre.
A flexibilização em diversas atividades trouxe uma ponta de esperança: as quadras das escolas poderão reabrir para o público, ainda que com capacidade reduzida, como cinemas e teatros. A Portela, que se virou na pandemia lançando sua feijoada em modo delivery e uma loja on-line, volta a funcionar em 1º de novembro. “Vamos fazer tudo do jeito que a Fiocruz mandar”, promete Luis Carlos Magalhães, presidente da Portela.
Um lance mais audacioso foi uma negociação selada com a Rede Globo em setembro, que mostrou interesse em transmitir as finais da escolha dos sambas-enredo do Grupo Especial – com pagamento de direitos às escolas.
A data ainda não está definida. “A notícia deu uma reanimada na turma. Tinha escola que nem ia passar pela seleção do samba e decidiu fazer, como a Paraíso do Tuiuti”, conta Gabriel David, 23 anos, filho do bicheiro Anísio Abraão David e à frente da Beija-Flor, que tenta estancar a crise com novos negócios, como um canal para crianças no YouTube e uma linha de roupas para venda on-line.
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É raro, mas o Brasil já viu outros carnavais fora de época. Em 1892, antes da era das grandes escolas de samba, o governo resolveu transferir a festa para junho, por considerar um mês “mais saudável”, certamente levando em conta o impiedoso calor de fevereiro.
Duas décadas mais tarde, a morte do então ministro das Relações Exteriores, o Barão do Rio Branco, a uma semana da folia provocou o adiamento para abril. Não adiantou nada – aliás, até adiantou: o povo foi para a rua e pulou duas vezes. Quando o Rio sediou a Eco 92, Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, cogitou-se um Carnaval no meio do ano, que acabou não acontecendo.
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Agora, as incertezas atingem não só as escolas de samba, mas também os blocos de rua, que aguardam uma posição da Riotur. Os entendidos acham que, de um modo ou de outro, o folião acabará encontrando o seu jeito de cair na folia, ainda que desrespeitando uma decisão oficial.
“Vai ter bloco mesmo sem autorização da prefeitura, e não duvido que a turma venha com gás redobrado”, diz o escritor e estudioso Alberto Mussa, jurado do prêmio Estandarte de Ouro, relembrando o Carnaval de 1919, quando o povo foi à forra após a devastação da gripe espanhola.
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Na própria passarela do samba, em branco o Carnaval não passa. O Museu do Samba e o Laboratório de Arte Carnavalesca enviaram um documento à prefeitura sugerindo ações simbólicas para marcar os dias da festa. Na lista, constam propostas como a tradicional lavagem da pista do Sambódromo por baianas de todas as escolas, a entrega da chave da cidade ao rei Momo e eventos virtuais, já de acordo com a nova etiqueta pós-vírus.
Até o velho corso, desfile em carros, foi lembrado como uma alternativa. Enquanto pairam tantas dúvidas, Leandro Vieira, dono do enredo campeão da Mangueira em 2016 e 2019, está neste momento em casa preparando um livro sobre os três últimos desfiles da verde e rosa. Afinal, o mundo não se acabou.