Em campo, o placar pode oscilar, isso qualquer equipe ou torcedor sabe que é do jogo. No Clube de Regatas do Flamengo, no entanto, os ventos vêm soprando consistentemente a favor em um embate diferente, sem bola. O time atravessa um momento de fortalecimento histórico, tanto no quesito administrativo quanto no financeiro. É uma trilha que se sedimenta desde o memorável ano de 2019, quando, à época capitaneada pelo técnico Jorge Jesus, a equipe arrebanhou tudo nos estádios, ficando atrás apenas do milionário (em libras esterlinas, vale ressaltar) Liverpool, no Mundial de Clubes.
Pois se dentro das quatro linhas a equipe hoje comandada por Dorival Jr. (após um recente rodízio de treinadores) e embalada pelos craques Gabigol e Arrascaeta encontrou rivais à altura nos últimos tempos, no faturamento o rubro-negro tem trânsito livre. Foi o único clube brasileiro a ultrapassar a cifra do bilhão de reais em 2021 — posto por anos ocupado pelos congêneres paulistas. Segundo o recém-divulgado estudo da plataforma Cupom Válido, com dados da Statista, o Flamengo embolsou 1,082 bilhão de reais no último ano, ante 910 milhões do Palmeiras e 757 milhões do Atlético-MG — não por acaso, os três primeiros colocados do Campeonato Brasileiro do ano passado, ainda que não nessa ordem.
A profícua fase do clube da Gávea pode ser explicada por diversas razões — e táticas, claro. Entre elas, os direitos de transmissão dos jogos, que respondem por mais de um terço da receita: 34%. As vendas do passe de jogadores figuram em segundo lugar, com 31% de participação no faturamento. E dá-se aí um ciclo virtuoso. O colchão de liquidez permite ao clube negociar boas transações, como a do volante multicampeão Willian Arão para o Fenerbahçe, da Turquia, que rendeu 3 milhões de euros (cerca de 16,5 milhões reais), considerado por especialistas um excelente valor por um jogador de 30 anos.
Divulgada em julho, uma pesquisa do Ipec (ex-Ibope) mostra quanto o Flamengo tem projeção nacional, um positivo indicador de seu potencial de capitalização. O time carioca é líder isolado na preferência entre os brasileiros, extrapolando, e muito, as fronteiras da Zona Sul carioca, onde está sua sede: 21,8% dos torcedores no país o consideram seu time do coração, uma média de uma a cada cinco pessoas. A equipe apresenta forte entrada nas regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste e em distintas classes sociais.
Em cima desses dados, o Flamengo aposta em um ascendente leque de negócios — o dos produtos licenciados. Eles correspondem a uma fatia menor, porém significativa, da torta financeira, que a cada dia avança nesses campos. Nas ruas, isso pode ser notado em camisas, chinelos, relógios e até hambúrgueres que levam o escudo do time, gerando ativos.
“Como em qualquer empresa, aqui existe uma estratégia”, diz Marcos Senna, diretor de marketing do clube. “Sabemos do alcance da marca em todo o território nacional, então, vamos licenciando, com muito critério, o que achamos que vai ser interessante”, acrescenta ele, lembrando o peso da venda de ingressos e do programa sócio-torcedor no cofre.
Nesse promissor jogo dos produtos licenciados — ou collabs —, uma das joias da coroa é a coleção de moda casual da Reserva, lançada em abril, com direito à atuação de jogadores como Diego Ribas e Hugo Souza no papel de garotos-propaganda. Há aí toda sorte de itens: desde camisetas a jaquetas e acessórios com o tema rubro-negro para todos os gostos e faixas etárias.
“Traduzimos em estilo uma inigualável paixão nacional”, avalia, com orgulho de torcedor, Pedro Cardoso, diretor de novos negócios da grife. As roupas descoladas vêm se somar às 160 lojas físicas oficiais do Flamengo espalhadas pelo país — uma liderança acachapante em relação ao Palmeiras, distante vice-campeão nesse quesito, com menos de trinta unidades de pontos de venda de argamassa e tijolo, ou presenciais, como se diz nos dias de hoje.
Mas as ramificações não param por aí. Envolvem um cardápio de hambúrgueres criado sob encomenda pelo chef Diogo Teixeira, do premiado Curadoria, o Fla Delivery (cuja divertida hashtag é #otopaladar), e, num patamar mais sofisticado, um smartwatch (relógio inteligente) da tradicional Technos, à venda por cerca de 1 000 reais desde maio, cuja leva inicial de 300 unidades se esgotou em pouquíssimas semanas.
“Associar-nos ao time é uma forma fácil de falar com o brasileiro”, explica a gerente de marketing da Technos, Juliana Favoreto, que promete novo lote para setembro. Especialistas do ramo concordam que as variadas parcerias são altamente vantajosas.
“O Flamengo está sabendo explorar bem sua marca, transformando torcedores em consumidores”, analisa Fernando Fleury, CEO da Armatore Market + Science, agência com foco em marketing esportivo. “Não basta ter um quórum gigante, tem de trabalhar em cima daqueles que de fato consomem o clube para fazer esse grupo crescer.”
A velocidade com que chinelos, cuecas, brinquedos e muitos outros itens com a marca Flamengo brotam nas prateleiras é, às vezes, motivo de reflexão na Gávea. Alvo de inevitável pirataria de seus produtos, este um motivo de preocupação, o clube também admite que, eventualmente, será preciso pisar no freio.
“É fundamental uma análise de cada envolvido com o Flamengo, tanto no licenciamento quanto nos patrocínios”, enfatiza o vice-presidente de comunicação e marketing, Gustavo Oliveira. “Há contratos estratégicos, outros com potencial de receitas relevantes para o clube e ainda aqueles com produtos e empresas que podem agregar valor à marca”, distingue.
Em solo carioca, o clube investiu recentemente em uma luxuosa arena de beach tennis, surfando a onda do esporte da moda, e corre nos bastidores a vontade de ter um estádio próprio, a fim de não precisar dividir o Maracanã em consórcio com o Fluminense (a hipótese de ser em Deodoro, como andou sendo propalada, foi descartada).
Para alçar novos voos, um entrave para o Flamengo ainda é sua limitada visibilidade em outros países e continentes, ao contrário do que ocorre com times como Barcelona, Paris Saint-Germain e Real Madrid. A inserção global dos europeus é facilitada pela transmissão dos campeonatos ao redor do mundo, o que não acontece com o Brasileirão.
Na pré-temporada, é comum ainda os times de fora cruzarem as fronteiras de seus países para disputar amistosos e, assim, fortalecer suas marcas. A criação de uma liga, nos moldes das europeias, seria bem-vinda, segundo enfatizam os entendidos.
“Sem dúvida, temos mercado no exterior, cerca de 1 milhão de seguidores da China nas redes sociais e um site em espanhol atualizado regularmente, um baita ponto a ser explorado”, vislumbra Gustavo Oliveira. “Ainda fechamos uma parceria com uma das maiores empresas americanas no ramo para incrementar nossa presença nos Estados Unidos, mas é um trabalho de longo prazo’’, reconhece. O primeiro chute já foi dado.
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