O fenômeno, polêmico e com fortes componentes místicos, tem nome e é descrito pelos neurocientistas por meio da sigla NDE (de Near Death Experience, ou experiência de quase morte, em português). Costuma ser vivido por quem chega muito próximo de morrer mas se recupera e, ao recobrar a consciência, relata um conjunto de sensações que remetem a transcendência e relaxamento. Foi o que Gisella Amaral, 76 anos, ícone de elegância e refinamento da sociedade carioca, vivenciou em outubro do ano passado. Na ocasião, ela estava no CTI do Hospital Pró-Cardíaco, em Botafogo, onde havia sido internada em decorrência de efeitos colaterais do tratamento de metástase de um melanoma (câncer de pele). Um dos medicamentos utilizados, de nova geração, provocou feridas que cobriram todo o seu corpo. Quando o sofrimento chegou ao clímax, Gisella passou a experimentar, paradoxalmente, um profundo bem-estar.
A sensação era de flutuar no quarto, pairando acima do próprio corpo, inerte na cama e ladeada pelos filhos, Ricky e Bernardo. Em seguida, viu-se em um túnel onde cortinas esvoaçantes pretas indicavam o caminho. Próximo do fim, surgiu o rosto de uma mulher muito sorridente. Não trocaram uma só palavra, mas ela percebeu que era um sinal de boas-vindas. Lembrou-se do marido, o empresário Ricardo Amaral, dos filhos, da nora e das netas. Só lhe vinha à cabeça um pensamento: ainda não era hora.
No momento em que sentia ter saído de seu corpo, Gisella estava praticamente desenganada pelos médicos. A pressão sistólica bateu em 22, os batimentos cardíacos ultrapassaram os 100 por minuto e os rins pararam de funcionar. Seus habituais 56 quilos (o peso atual) estavam reduzidos a 38. “Essa experiência me ensinou que morrer é doce e suave. Ruim é para quem fica. Ainda assim, está claro para mim que quero viver mais um pouquinho. A vida é um presente, e temos de aproveitá-lo com alegria”, resume Gisella. Os percalços vividos durante a internação no CTI do Pró-Cardíaco foram uma exceção em uma rotina de tratamentos que já dura quase um ano. Até então ela nunca havia sentido dor, enjoo nem falta de apetite. Agora está tão bem — “Nunca comi tanto”, diz entre risadas — que chegou a surpreender o oncologista Antônio Carlos Buzaid, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, onde realiza sessões mensais de imunoterapia. “A minha resposta para tudo isso é a minha fé. A minha e a dos meus amigos”, diz Gisella. Buzaid concorda. “O caso de Gisella é grave, mas está controlado. Os tumores diminuíram muito de tamanho e é bem possível que a maneira calma e a religiosidade dela estejam ajudando”, avalia o médico.
Lidar com o câncer não é novidade para Gisella. Há catorze anos, ela fez um autoexame e descobriu um nódulo na mama. Realizou uma bateria de testes que constataram outros três. Fez mastectomia, quimioterapia e perdeu os cabelos durante o tratamento. Foi difícil, mas agora a situação é bem mais complexa. Gisella tem nove tumores espalhados pelo corpo, em vários ossos (esterno, fêmur esquerdo, coluna) e no fígado. Antes, eram catorze, mas, com o tratamento, cinco deixaram de ser detectados. “Não perdi uma festa sequer nesse último ano. Você não vai me ver chorando ou bancando a coitadinha, dizendo que Deus se esqueceu de mim. A doença se alimenta disso”, afirma. À primeira vista, tal maneira de encarar o câncer parece um discurso de autoajuda. Quem convive com Gisella, por sua vez, vê o otimismo como reflexo de sua personalidade. “Ela tem uma força fora do comum para enfrentar situações difíceis. Minha mãe não se abate. Está sempre sorrindo e com uma atitude positiva diante da vida”, conta o filho mais velho, Ricky Amaral, de 47 anos.
Referência na moda, nos costumes e na arte de receber bem na sociedade carioca a partir da década de 60, Gisella Amaral continua servindo de exemplo. Desde jovem, seu nome esteve ligado a causas sociais, especialmente às da religião católica, da qual é seguidora fervorosa. Ela já chegou a estar envolvida com 39 instituições de caridade ao mesmo tempo, mas hoje, por causa da doença, diminuiu o ritmo. Ainda assim, não abre mão de alguns compromissos, entre eles o de organizar a festa dos aniversariantes do mês da Casa São Luiz para Velhice e o trabalho no Banco da Providência. “Esta crise atrapalhou muito as doações. Fiz a Feira da Providência durante onze anos no Jockey Club. As empresas que me ajudavam agora não colaboram mais. No ano passado, não consegui arrecadar dinheiro suficiente. Neste ano, também não”, lamenta.
A compaixão pelos mais necessitados começou aos 5 anos. Ao visitar os parentes de uma babá que morava em uma favela, reparou que as crianças não tinham brinquedos. Em casa, separou uma boa quantidade dos seus e distribuiu entre a meninada. Adulta, fez curso de instrumentação cirúrgica para trabalhar como voluntária em hospitais públicos. A caridade permeou toda a sua vida e refletiu-se no hábito de não usar joias — exceto por uma aliança e um anel de Nossa Senhora das Graças. “Não vejo sentido em gastar fortunas para me enfeitar, mas não censuro ninguém”, diz. Adepta das bijuterias, mantém poucos vestidos de grife no armário, todos peças-piloto, uma espécie de molde, comprados diretamente das casas de alta costura. Por isso, ela jura, custaram barato. Como sempre foi magra e alta, as marcas famosas como Dior, Givenchy e Guy Laroche faziam questão de emprestar-lhe suas criações para que ela desfilasse por Paris e Nova York, cidades onde seu marido era dono de boates badaladas.
Casados há 52 anos, a carioca Gisella e o paulista Ricardo Amaral conheceram-se em março de 1964, em uma festa. Ricardo conversava com duas amigas quando notou uma moça deslumbrante que usava um enorme coque. Ao perceberem que ele não prestava atenção em uma palavra do que diziam, resolveram apresentá-lo a Gisella Amaral — sim, seu sobrenome de solteira é idêntico ao dele. A primeira impressão não foi exatamente boa. Os dois passaram a noite discutindo política — em campos opostos. Ainda assim, ele fez questão de deixá-la em casa. A partir daí, não pararam mais de se ver. “Sou o homem mais sortudo da terra. Gisella sempre levou a vida com leveza e mesmo agora está enfrentando tudo com elegância. Ela só tem um defeito: é péssima fisionomista. Artista, quando ela encontra, trata como se fosse o melhor amigo dela. Aí, então, lembra que só o conhece da TV”, conta o marido.
O tríplex dos Amaral no Leblon segue um padrão peculiar de decoração, em que cada andar tem uma cor predominante. O 1º é todo enfeitado com objetos azuis. No 2º prevalecem o vermelho e o verde, enquanto no último piso o amarelo está por toda parte. Gisella gosta de recepcionar as visitas com roupas que combinam com as cores de cada ambiente. “É quase um TOC”, ela ri. Nos fins de semana, o casal costuma receber os filhos e as netas Maria Julia, Mariana e Maria Fernanda, do caçula Bernardo, para jantar. “A doença aproximou mais a gente. Agora, eles sempre vêm aqui e me ligam o tempo todo para saber como estou. Recebo muito carinho”, diz ela. Embora tenha um tratamento regrado, ela procura, dentro do possível, manter a rotina. Três vezes por semana, faz ioga em casa com um professor particular. Nos outros dias, caminha no Jardim Botânico. À noite, nada 2 000 metros na piscina do Copacabana Palace. No dia da entrevista a VEJA RIO, depois de organizar um almoço para uma amiga de São Paulo e da aula de ioga, levou a neta mais velha, Maria Julia, de 15 anos, ao ortopedista. Com uma disposição assombrosa, saiu em disparada pelas ruas do Leblon para alcançar uma loja de artigos médicos antes que fechasse. Tudo com um sorriso contagiante nos lábios. “A alegria é o melhor remédio que existe”, ensina.