A cena, para lá de pitoresca, aconteceu recentemente. Um grupo formado por cinco moças americanas deixou o suntuoso hotel Sheraton, na Avenida Niemeyer, atravessou a pista rumo ao morro do Vidigal e se embrenhou pela favela. Não, elas não foram ao descolado mirante do Arvrão, a um baile funk em alguma laje ou atrás de substâncias ilícitas. As jovens em questão, esguias e elegantes, eram comissárias de bordo de uma companhia aérea internacional que, durante uma folga na cidade, aproveitaram para fazer as unhas no salão Espaço Beleza, localizado na subida do morro. Na mesma época, o comerciante Thiago Kossyguim, dono da peixaria Furacão dos Mares, na Rocinha, ficou surpreso ao atender a um telefonema. Do outro lado da linha uma cliente encomendava postas de salmão para entrega em um prédio elegante no bairro da Lagoa, a cinco quilômetros dali.
Além do fato de serem localizados em duas favelas e prestarem serviços baratos e de boa qualidade, o salão de beleza e a peixaria têm um denominador comum: ambos foram indexados no mapa da área produzido e publicado no Google. Foi justamente o mapa virtual que levou as americanas a atravessarem a rua em busca do salão e a consumidora da Lagoa a encomendar seu peixe no pé do Dois Irmãos. Até meados de julho, as duas comunidades, assim como todas as outras da cidade, eram mostradas na internet como verdadeiros desertos em meio à mancha urbana, desprovidas de serviços e comércio. Hoje, são um amontoado de pontinhos que uma vez clicados revelam uma míriade de informações e ofertas de todo tipo. “A ideia é colaborar com o aumento na renda dos empreendedores locais e trazer ganhos econômicos e sociais para toda comunidade”, explica Susana Ayarza, diretora de marketing do Google.
A empreitada nas favelas cariocas é uma iniciativa inédita na gigante da tecnologia baseada na Califórnia, cuja estratégia de negócios é fortemente voltada para a inovação. Criador de engenhocas que vão do óculos digital Google Glass e do Google Car, um carro que anda sem motorista, o conglomerado nascido de um site de busca viu nas favelas cariocas um terreno fértil para avançar em território absolutamente novo. Outro colosso do setor, a Microsoft, já havia se enveredado por esse caminho no início do ano, com o mapeamento digital de quarenta áreas, incluindo Vigário Geral e Maré. O projeto empolgou tanto que hoje a empresa fundada por Bill Gates já planeja ampliar para 85 o total de comunidades radiografadas.
É obvio que ambas não estão realizando todo esse trabalho apenas para exercer o bom mocismo entre desvalidos. Com a nova base de dados em seus servidores, elas estreitam laços com moradores e potenciais usuários de seus serviços. Levantamento recente feito pelo Instituto Pereira Passos (IPP) com 6 000 jovens moradores de 14 a 24 anos de dez favelas pacificadas concluiu que nove em cada dez deles estão conectados à internet, sendo que 73% dos entrevistados navegam pela rede diariamente. Entre os pesquisados, 86% têm perfis no Facebook, rede social que é arquirrival das duas corporações. “As favelas cariocas são uma nova e decisiva fronteira digital e é crucial para nós estarmos lá”, diz Lúcio Tinoco, diretor de engenharia do Bing, serviço de buscas da Microsoft.
Para se embrenhar nos meandros dos morros, os dois titãs da internet, dos computadores e smartphones tiveram de desenvolver uma abordagem complexa. Seus executivos buscaram quem conhecesse a geografia e as peculiaridades locais como forma de vencer o labirinto de vielas e não correr riscos em áreas ainda ocupadas por criminosos e traficantes. Equipes de até vinte pessoas, de celulares em punho, bateram de porta em porta para pedir aos comerciantes maiores informações de seus negócios. Em seguida, marcaram o exato local onde se encontra cada serviço identificado. Mesmo com profissionais devidamente qualificados e treinados, as duas líderes do competitivo setor de tecnologia sofreram para se adaptar ao caos urbano local. Os sofisticados sistemas de computadores e geolocalizadores desenvolvidos nos Estados Unidos não raro se confundiam em meio ao denso aglomerado de casas. Era comum, por exemplo, o ponto marcado ser deslocado para outro barraco.
Outro desafio foi lidar com a topografia acidentada. No Vidigal, o declive acentuado do Morro Dois Irmãos faz com que, constantemente, o satélite deslocasse os endereços para o meio do oceano. Nestes casos, a marcação teve de ser realizada posteriormente em computador de tela grande, deslocando-se o cursor milimetricamente pelo mapa. Como parte do espírito colaborativo e de inclusão digital do projeto, as empresas disponibilizaram ferramentas on-line para que os próprios comerciantes incluíssem informações sobre seu negócio, como fotos e telefone de contato. A ideia é que o programa ganhe adesão popular, e cresça exponencialmente. Quem participa, atesta que o simples fato de estar no mapa pode impulsionar o faturamento em até 10%. Isso sem contar o afago na autoestima. “É humilhante você viver excluído do mapa em meio a lugares tão nobres”, diz Vitor Nascimento, dono de uma galeria de arte recém-aberta no topo da Rocinha. “Com o projeto, meu trabalho ganhou uma dimensão que jamais esperei ter”, afirma.
O ciclo virtuoso pelo qual passam os morros cariocas está diretamente relacionado à queda dos índices de violência. Com a chegada das UPPs e a diminuição dos conflitos armados, criou-se um ambiente favorável à expansão dos negócios. “Sem o medo da bala perdida, o morador passou a circular mais”, diz Cezar Vasquez diretor superintende do Sebrae-Rio. Desde que o processo de pacificação foi iniciado, em 2008, a entidade já realizou 54 000 atendimentos em áreas pacificadas, entre cursos profissionalizantes e consultoria. Em um veloz efeito cascata, os comerciantes locais deixaram a informalidade, o que permitiu que ganhassem status de empresas. Com isso, podem pegar empréstimos, investir em melhorias e ter acesso a benefícios sociais. Desde que foi criado, em 2012, o programa de microcrédito da Age Rio, órgão pertencente ao governo do estado, aumentou suas linhas de crédito de 432 000 reais para 35 milhões este ano. “O apoio à atividade econômica e o reforço nos investimentos sociais são prioridade no programa de UPPs a partir de 2015”, diz o governador Luiz Fernando Pezão.
Reduzir o abismo que separa o asfalto do morro é um longo caminho a ser percorrido. Mesmo em áreas ocupadas por forças policiais há uma tensão latente. Na Rocinha, as áreas mais remotas da favela continuam a servir de abrigo para criminosos que ainda vivem por ali. “Quando anoitece, muitas ruas são ocupadas por menores a serviço do tráfico. Dá medo”, afirma um dos participantes do projeto de mapeamento que pediu para não ter a identidade revelada. Por lá, os estampidos provocados por disparos continuam a ser ouvidos com relativa frequência. Considerado o maior conjunto de favelas da cidade, a Maré enfrenta situação ainda mais delicada. Ocupada desde março pelo exército, seus 130 000 moradores continuam a viver sob o terror imposto pelo tráfico. Não raro, os 3 000 pontos comerciais existentes na área têm de baixar as portas por ordem dos criminosos.
A cada notícia de tiroteio, instala-se um clima de pânico que perdura por semanas. “Mesmo que o problema seja a quilômetros daqui, basta que se fale mal da favela para o movimento cair 40%”, afirma Marcelo Ramos, dono de um bem instalado bar especializado em cervejas artesanais no Complexo do Alemão. A infraestrutura precária também aflige quem deseja expandir e melhorar seu negócio. Mesmo na parte baixa dos morros há cortes no fornecimento de água e luz. O aperto das vias dificulta não só o recolhimento do lixo, como também o abastecimento dos estoques. São problemas graves, mas superáveis, em áreas onde se vivia em contínuo clima de guerra. Nesse sentido, a integração digital é um passo a mais para se derrubar a trincheira imaginária que existe entre asfalto e morro.