O silêncio da madrugada na Zona Portuária foi rompido pelo chacoalhar de latas de tinta em spray. Com a atribulada Avenida Rodrigues Alves fechada para o trânsito, dezoito artistas deram início em agosto ao projeto urbanístico Rua Walls, que resultou em mais de 1,5 quilômetro de muros pintados nos armazéns da região. Durante um mês, alguns dos principais nomes em ascensão na arte urbana do Rio trabalharam na criação de dezesseis enormes painéis a céu aberto, que passaram a fazer companhia a outras pinturas gigantescas de artistas conhecidos mundo afora, como Eduardo Kobra e Rita Wainer — donos dos painéis mais fotografados daquele pedaço. Metade da turma munida de spray era do sexo feminino, entre elas a estreante Chica Capeto, designer de moda — uma bem-vinda mudança neste colorido cenário. “O grafite não é um universo muito aberto, e claro que ainda há hoje muito mais homens, mas vejo que aumenta a cada dia o espaço para as mulheres”, celebra a jovem de 21 anos.
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O trabalho na região portuária consumiu quase 5 000 litros de tinta e pôs em destaque o talento de várias representantes dessa nova safra da arte urbana carioca, como Dolores Esos. Niteroiense, atualmente morando na Zona Sul do Rio, ela deixou de lado a cenografia faz quatro anos para se debruçar sobre o grafite — quem já visitou o bar Boleia, em Botafogo, com certeza tirou foto junto a uma de suas pinturas que ornam o lugar. “No começo, não só senti resistência por ser mulher, como também precisava ter sempre alguém junto, me acompanhando, para me dar segurança de pintar na rua”, lembra. Dolores é fruto de uma mão talhada para a arte que vem ganhando impulso no avanço da pauta feminista e na luta por equidade que ela impõe. “Foi a partir da insistência de alguns coletivos, que passaram a cobrar por mais mulheres em eventos e festivais, que a gente começou a conquistar espaço e visibilidade”, afirma Renata Fernandes, a grafiteira Edaz, cujos trabalhos podem ser facilmente encontrados (e apreciados) nos muros da Ilha do Governador.
Um nome figura entre as precursoras da virada de página do grafite feminino no Rio: Panmela Castro, mais conhecida pelo codinome Anarkia Boladona, cujos traços estão eternizados em paredes de vinte países. “Tem mais de duas décadas que comecei a ouvir sobre luta de gênero e já tive de encarar muito marmanjo machista nesse tempo, para que a gente possa trabalhar e ser reconhecida”, diz a artista, nascida e criada no subúrbio da Penha e formada em pintura pela Escola de Belas Artes da UFRJ. Panmela foi quem levou a ativista paquistanesa Malala Yousafzai, vencedora do Nobel da Paz, para pintar um muro em homenagem à vereadora Marielle Franco em 2018, na comunidade Tavares Bastos, onde fica seu ateliê. É lá também que funciona a ONG comandada por ela, a Rede Nami, cujo objetivo é promover o direito das mulheres através da arte urbana.
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O movimento feminino na arte de rua vem tomando tanto corpo que a primeira loja de grafite brasileira tocada apenas por mulheres abriu as portas no centro do Rio, a Dona Bomba, numa região de altos muros coloridos. “A gente ia comprar spray e os atendentes se dirigiam aos nossos namorados. As mulheres sentem falta de ser ouvidas nesse universo e a loja é mais um progresso nesse sentido”, reflete Pâmela Matos, uma das sócias. Além das recentes paredes a céu aberto adornadas durante a edição 2020 do Rua Walls, a área exibe o mural Etnias, do paulistano Kobra, pintado para a Rio 2016 e incluído no Livro dos Recordes, e conta também com o maior grafite do mundo já produzido por mulher: o painel Contos, de Luna Buschinelli, na Avenida Presidente Vargas, com seus 2,5 quilômetros de extensão.
Influenciado pela contracultura americana e ainda muito vinculado ao hip-hop, o grafite se popularizou entre as décadas de 70 e 80, decolando de São Paulo para desembarcar em outras capitais brasileiras nos anos seguintes. Foi duramente freado durante a ditadura militar ao ser associado a vandalismo, ganhando ali seu teor politizado de denúncia e crítica. E conquistou lugar como manifestação artística legítima graças ao trabalho de resistência de quem metia a mão na lata. “Começamos sem pretensão, querendo colorir a cidade. Apesar de o Rio sofrer várias mazelas, por aqui essa arte se tornou mais alegre e refletiu a personalidade do carioca, que logo reconheceu seu valor e passou a querer ter aquilo em sua casa”, lembra Bruno BR, um dos que ajudaram a escrever este novo capítulo, ao lado de nomes como Gustavo e Otávio Pandolfo (Osgemeos), Tomaz Viana (Toz), Marcelo Eco e a própria Panmela.
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Em 2011, uma lei municipal descriminalizou o ato de grafitar quando o objetivo é valorizar o patrimônio público ou privado (desde que consentido pelo proprietário ou com autorização dos órgãos competentes no caso de bens públicos). Um decreto do então prefeito Eduardo Paes instituiu o Dia do Grafite em 27 de março. “São passos que confirmam o grafite como uma arte que, mesmo quando não autorizada, é enquadrada em um polo positivo em contraponto à pichação”, explica o pesquisador e cineasta Gustavo Coelho. Enquanto os muros coloridos ascendiam, seus desenhos foram ganhando as galerias, e o grafite se tornou vertente da arte contemporânea das mais vendáveis: no ano passado, a obra Parlamento de Chimpanzés, do misterioso muralista britânico Banksy, foi vendida por surpreendentes 10 milhões de libras, o equivalente a quase 70 milhões de reais. Prova de que a arte urbana pode ajudar a derrubar os muros do preconceito. E dá-lhe mulheres com spray na mão. Correção: diferentemente do que foi publicado no quadro na edição impressa (abaixo), a artista Lidia Viber é mineira.
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