No livro Coração das Trevas, escrito em 1899 por Joseph Conrad, o personagem Kurtz resume em suas últimas palavras o desastre colonial europeu na África: “O horror, o horror”. Com essa expressão, o traficante de marfim cunhou uma síntese do poder irracional, da cobiça desmedida, da exploração de inocentes, do abandono e da indiferença. Não foi à toa que Francis Ford Coppola escolheu a narrativa em torno de Kurtz (vivido por Marlon Brando) como esqueleto para Apocalipse Now, sobre a Guerra do Vietnã. O Rio não é o Congo sob o domínio belga de Conrad nem as selvas da Indochina de Coppola, mas, depois dos incidentes que se desenrolaram na região de Parada de Lucas e Cidade Alta na terça-feira (2), é impossível negar que há algo de muito errado em nossa cidade.
Além do caos em si, que misturou violência exacerbada com cenas de miséria humana na forma de saques, chamou atenção a apatia de quem deveria controlá-lo. O governador Luiz Fernando Pezão, em viagem a Brasília, pediu ajuda ao governo federal e recebeu como resposta o envio de 200 homens da Força Nacional e da Polícia Rodoviária Federal. O secretário de Segurança Pública, Roberto Sá, alegou, de forma quase pueril, que a inteligência do órgão sabia da articulação dos criminosos mas não tinha meios para contê-los. Da mesma forma, foi patética sua avaliação de que, em um dia que terminou com nove horas de balbúrdia, estradas e avenidas fechadas, nove ônibus e dois caminhões incendiados e saqueados, a polícia fez um bom trabalho ao evitar um banho de sangue. O pior horror, como mostrou Conrad, é aquele que, banalizado, corrói nossa capacidade de reagir.