Há muitos e muitos anos, as águas da Guanabara eram outras, assim como o pontilhado de municípios debruçados sobre sua vastidão. Niterói, São Gonçalo, Magé, Duque de Caxias tinham outros nomes, e a baía, que ao ser avistada em 1502 pelo navegador florentino Américo Vespúcio foi confundida com um Rio (daí o nosso Rio de Janeiro), era translúcida e coalhada de ilhas, praias e enseadas. Muitas delas desapareceram da paisagem.
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A saga desta maravilha de cenário, sua importância na vida do carioca e as transformações por que passou ao longo de cinco séculos foram examinadas minuciosamente pelos acadêmicos Jorge Luiz Barbosa, Diogo Cunha e Ana Thereza de Andrade Barbosa para dar vida ao livro As Águas Encantadas da Baía de Guanabara, lançado pela Numa Editora.
“Vivemos em uma cidade de montanhas, florestas, mas que também tem uma baía majestosa, impressionantemente bela, com uma ecologia que poderia alimentar a todos nós, um espaço de convivência e muita história”, resume Barbosa, mestre em geografia pela UFRJ.
Fruto de um ano de pesquisa, o livro nasceu da exposição Domingos de Sol, montada em 2018 no Galpão Bela Maré (comunidade que não tem esse nome à toa, também já foi banhada pelo mar, ali pertinho), com imagens icônicas da baía. Ao se deter sobre elas, impressiona como a ação humana conferiu perdas ao cartão-postal, desde a chegada dos europeus.
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Originalmente os donos da terra, os indígenas (tupis que chegaram da Amazônia por volta do século X, 500 anos antes dos brancos) habitavam a área, mas sem aterrar o mar ou unir ilhas, como ocorreria bem mais tarde para a criação do câmpus universitário da UFRJ, no Fundão.
Ainda assim, a Guanabara segue como a segunda maior baía, em extensão, do litoral brasileiro, atrás apenas da Baía de Todos-os-Santos, no estado baiano. O começo do livro volta aos primórdios da região, quando o território era ocupado por tabas, um conjunto de ocas como as Karióc (tradução no tupi-guarani de “casa dos carijós”, nome de uma tribo local).
Segundo os autores, essa seria a verdadeira origem do gentílico “carioca”, historicamente associado ao nome de um pequeno rio (hoje quase todo subterrâneo) que corre por Cosme Velho, Catete e Flamengo. “Pois além do rio, havia a taba, uma comunidade, com os primeiros cariocas”, enfatiza Barbosa.
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Com a chegada de portugueses, espanhóis, holandeses e dos africanos escravizados, a baía passou a ser usada para além da pesca e do banho (este, aliás, um saudável hábito indígena que os cariocas cultivam até hoje, ao contrário de outros povos). A Guanabara acabaria por se tornar a estrada por onde trafegavam mercadorias diversas vindas de regiões mais distantes, como a Freguesia de São Tiago de Inhaúma (hoje só Inhaúma), área de produção rural que abastecia os mercadores do Centro.
Com essa movimentação, tem início a construção de atracadouros, públicos e privados, no que marcaria o primeiro ciclo de mudanças empreendidas pelo homem naquela paisagem. “O livro é cheio de novidades. Primeiro que a gente, quando pensa em praia no Rio, pensa em Zona Sul, mas a Zona Norte, nos lados da Guanabara, também é muito banhada pelo mar”, lembra o historiador Luiz Antonio Simas, outro estudioso da cidade, autor do prefácio.
Às revelações históricas somam-se números impressionantes que dão conta de uma transformação radical do cenário: de 127 ilhas, ficaram apenas 65; de 118 praias inicialmente registradas na baía, restaram 62. “E a maioria delas está em péssimas condições de balneabilidade, o que afasta o público e as atividades ao redor”, lamenta o autor Jorge Barbosa, criado no Caju, região tão praiana (no passado, é claro) que abriga até hoje a Casa de Banhos de Dom João VI.
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“Na minha infância, via as pessoas indo à praia em Ramos, ainda se entrava no mar no Caju. Atualmente, diante da inexistência de um sistema de saneamento, isso acabou.” Por dia, para se ter ideia, são lançadas mais de 10 toneladas de lixo e 340 de esgoto na Baía de Guanabara.
Em meio à extensa pesquisa, em instituições como o Arquivo Nacional, o Arquivo Público do Estado de São Paulo (que surpreendeu os pesquisadores com informações e imagens desconhecidas), livros e entrevistas, o lado social da baía também sobressai na obra. “Com todas as intervenções e alterações urbanísticas, algumas monumentais, como o surgimento da Avenida Brasil e do Aterro do Flamengo, as águas não unem mais as pessoas como antigamente”, ressalta.
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Antes, celebrações religiosas aconteciam em vários pontos de seu entorno. A tradicional Festa da Penha, por exemplo, responsável por levar milhares de pessoas às escadarias da igreja na Zona Norte, em outubro, já chegou, em outros tempos, a motivar uma romaria marítima. No século XIX, botes saíam do Cais do Valongo (então “Cais da Imperatriz”), na região portuária, e navegavam até a igreja encarapitada no morro, bem ao alto, já que o mar batia a seus pés, como ocorria também no Outeiro da Glória na era pré-Aterro.
Com as mudanças registradas no curso de anos, também sumiram ritos como a celebração de Iemanjá, principalmente na virada do ano, ora tradicional nas praias do Centro, como as da Glória e da região do Porto, engolidas pelos aterros no começo do século XX. “O bairro de Ramos, por exemplo, foi pensado como um balneário, uma espécie de Copacabana da Zona Norte”, enfatiza Simas.
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“Por que você acha que o Olaria Atlético Clube, que fica naquela região, tem um remo (além de um leme e uma âncora) no escudo? Por ali aconteciam os banhos de mar a fantasia, uma tradição muito bacana do Carnaval, que murchou”, lamenta o autor de O Corpo Encantado das Ruas (Editora Civilização Brasileira).
“Os tupinambás chamavam a baía de seio do mar, como uma mãe generosa que cuidava de todos”, reforça Jorge Barbosa, revolvendo o espírito de uma época que já se foi. Que as tão prometidas melhorias do que se tornou um cartão-postal de dejetos e sujeiras saiam de uma vez por todas das gavetas oficiais e façam jus a essa imensidão de água inundada de história.