Os cânones da medicina moderna preconizam que a rapidez na detecção e no tratamento do câncer é decisiva para a cura do paciente. Tanto que, há dois anos, o governo federal tornou obrigatório por lei que o prazo máximo entre o diagnóstico do tumor e o início das terapias pelos serviços públicos de saúde seja de sessenta dias. O mundo ideal da medicina e do cumprimento da lei, entretanto, está distante da atual realidade do Instituto Nacional de Câncer (Inca), um dos mais importantes centros de estudo e tratamento da doença no país, que opera cinco unidades espalhadas pela cidade. Dados compilados por médicos da instituição com exclusividade para VEJA RIO mostram que o período médio entre a matrícula no complexo e o início do tratamento ultrapassa a determinação legal. Um portador de neoplasia do sangue, como leucemia, leva em média 98 dias no processo. Uma mulher com um nódulo no seio, 78 dias. E tal período não inclui a etapa inicial, chamada de triagem, que antecede a matrícula propriamente dita. Nessa fase o calvário do paciente pode levar de 118 a 250 dias, dependendo da unidade de terapia. É um tempo precioso, que costuma ser decisivo no sucesso do tratamento. “Tenho muito medo de que minha doença se espalhe e atinja outros órgãos”, angustia-se Belarmino Caetano da Silva, 61 anos, morador de Nova Iguaçu e portador de um câncer de pele na região do nariz. Atendido pela primeira vez no Inca em agosto do ano passado, ele levou três meses para conseguir marcar uma tomografia. Feito o exame, ele agora espera há oito meses pela cirurgia de remoção do tumor — por duas vezes ele teve o procedimento marcado e posteriormente cancelado.
O Inca é um colosso que acumula cifras portentosas. Em seus complexos hospitalares instalados no Centro, na Vila Isabel e em Santo Cristo foram registradas no ano passado 7 500 cirurgias, 14 500 internações, 40 000 sessões de quimioterapia, 67 000 de radioterapia e 240 000 consultas médicas. No entanto, basta uma visita a seu prédio principal na Praça da Cruz Vermelha, o Hospital do Câncer 1 (HC1), para perceber que, mesmo com esses números, problemas graves se acumulam. Ao circular pelos onze andares do edifício, onde são realizados os procedimentos mais complexos, torna-se evidente que a instituição enfrenta problemas de gestão. Nos primeiros pisos, filas quilométricas de pacientes se estendem por ambulatórios, salas de emergência e de exames clínicos. A partir do 4º andar, o cenário é de enfermarias lotadas, com macas improvisadas nos corredores para atender os doentes em estado crítico. No entanto, nos andares superiores, a visão muda radicalmente. Ali, no centro cirúrgico, os leitos passam a maior parte do tempo desocupados, enquanto salas de operação permanecem com as luzes apagadas, a despeito da sofisticada aparelhagem disponível. A ociosidade das instalações é sinal de um problema crítico da instituição: a falta de funcionários.
Desde 2006, a direção do hospital e o Ministério da Saúde empreendem uma mudança radical na estrutura de recursos humanos do Inca. Até a primeira metade da década passada, pouco mais de um terço dos 3 700 empregados, principalmente os de nível técnico, era ligado à Fundação Ary Frauzino (FAF), de caráter privado. Nos últimos anos, tais profissionais passaram a ser desligados e substituídos por concursados. A troca foi acelerada a partir de 2012 por determinação do Tribunal de Contas da União, depois que o Ministério Público Federal abriu uma ação de improbidade contra a direção do Inca por suspeita de irregularidades nas contratações feitas por meio da FAF. O problema é que o ritmo dos concursos e das nomeações não tem conseguido suprir a demanda — apenas no ano passado, cerca de 580 funcionários foram dispensados e tal contingente ainda não foi reposto, o que provocou um déficit de pessoal (veja o quadro). “Eu poderia realizar uma operação por dia, mas tenho feito apenas uma por mês, pois não há anestesistas nem técnicos para dar suporte”, diz um cirurgião com dezessete anos de casa. Uma das pacientes de seu departamento, moradora de Angra dos Reis, teve de desmarcar o procedimento três vezes devido à falta de estrutura para atendimento no CTI. Só conseguiu ser operada em abril, depois de sete meses de espera. “Com a demora, passei a sofrer de problemas circulatórios”, diz ela, que pediu para não ser identificada por receio de ter seu tratamento comprometido.
Não bastasse a redução no quadro, o Inca tem enfrentado também problemas sérios em áreas prosaicas, como suprimento de itens hospitalares — ataduras, roupas de cama e cateteres entre eles. Pacientes reclamam da higiene precária, do descuido com o descarte do lixo e de equipamentos sem manutenção. Há ainda relatos de doentes que deixaram de receber medicamentos, mesmo os básicos, como dipirona sódica. “Hoje faz parte da minha rotina esperar por horas na fila da farmácia e não receber os remédios e suplementos de que preciso. Por sorte minha família tem condição de comprá-los”, diz Bruna Monteiro, estudante de 17 anos, que aos 12 operou um câncer no fêmur, mas ainda requer acompanhamento trimestral. O sucateamento do Inca é tão sério que chamou a atenção da Comissão de Trabalho, Legislação Social e Seguridade Social da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). “Solicitamos uma visita ao hospital mas tivemos de esperar quase um mês para conseguir”, diz o deputado Paulo Ramos (Psol), presidente da comissão que marcou um encontro com o diretor-geral do Inca, Paulo Eduardo Xavier de Mendonça, na segunda 29. Nomeado para o cargo desde o último dia 8, Mendonça substituiu o ex-diretor da instituição Luiz Antonio Santini, que estava no posto desde 2005. Procurados por VEJA RIO, tanto Mendonça quanto Santini não concederam entrevistas.
Fundado em 1937 como Centro de Cancerologia por um decreto do presidente Getúlio Vargas, o Inca tem sua história fortemente entrelaçada ao combate, tratamento e estudo do câncer no país. A sede atual foi inaugurada por Juscelino Kubitschek, em 1957, com o que existia de mais moderno em termos de equipamento. É nesse ponto que o atual caos vivido pela instituição se torna ainda mais dramático. O mesmo hospital onde seringas usadas são abandonadas na pia dos banheiros abriga aparelhos como o robô Da Vinci, concebido a partir de uma tecnologia desenvolvida pela Nasa. Instalado em 2012 ao custo de 5 milhões de reais, é usado em cirurgias de altíssima precisão. “O Inca sempre foi um centro de excelência e agora enfrenta um severo esvaziamento em sua estrutura”, diz o ex-diretor Marcos Moraes, que comandou o complexo entre 1990 e 1998. Um exemplo disso é a perda de relevância da instituição dentro do ministério. No passado, o diretor da unidade reportava-se diretamente ao ministro. Hoje responde à Secretaria de Atenção à Saúde (SAS). “Quando uma instituição começa a apresentar tantos problemas é porque o desempenho já não estava bom. Isso tudo que vem acontecendo é reflexo de um sistema desorganizado”, diz.
O Ministério da Saúde argumenta que vem tomando medidas concretas para sanar a crise do Inca. Em nota emitida pela assessoria de imprensa, aponta sua atuação em parceria com a prefeitura na distribuição das vagas e acaba de adotar um novo sistema de regulação de leitos com o governo do estado para tornar o atendimento mais eficiente. Declara ainda que o problema do déficit de funcionários deverá ser resolvido neste ano com a conclusão da nomeação de profissionais aprovados em concurso realizado no ano passado. E, no que diz respeito à falta de material, argumenta que o governo está integrando todos os procedimentos de compra nas unidades federais do Rio com o objetivo de garantir preços mais competitivos e regularidade nos estoques. Espera-se que tais medidas de fato se concretizem e revertam rapidamente a situação crítica do Inca. Os pacientes não têm um minuto a perder.