A morte de uma personalidade rica e famosa não raro desemboca em renhidas disputas entre herdeiros. No caso do cirurgião plástico Ivo Pitanguy, falecido em 2016 aos 93 anos, vítima de uma parada cardíaca, a contenda é de outra natureza. De um lado do ringue estão seus quatro filhos — Ivo, Gisela, Helcius e Bernardo; do outro, a equipe do “professor”, como era carinhosamente chamado por seus discípulos.
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O litígio começou logo depois que o mestre dos bisturis morreu. Por carta, a família comunicou à direção do Instituto Ivo Pitanguy, que funciona dentro da Santa Casa de Misericórdia, a decisão de tirar o prestigiado nome do patriarca da organização. A temperatura subiu e a briga foi parar nos tribunais.
As primeiras fagulhas entre a família e a direção do instituto surgiram no dia seguinte à cremação do corpo do cirurgião, quando o clã mandou trocar todas as fechaduras dos armários da clínica na Rua Dona Mariana, em Botafogo. Ali, durante mais de meio século, Pitanguy deu expediente e retocou o rosto de um rol de celebridades — das italianas Sophia Loren e Gina Lollobrigida às brasileiras Sonia Braga, Vera Fischer e Susana Vieira, além da princesa Stéphanie de Mônaco.
Parte das instalações do instituto (a secretaria, o auditório, a biblioteca) funcionava justamente na clínica. O local também abrigava, duas vezes por semana, as aulas do curso de pós-graduação em cirurgia plástica do mesmo instituto, criado pelo médico no início da década de 60 em parceria com a PUC-Rio e o Instituto Carlos Chagas.
Os herdeiros explicam a troca de fechaduras e, mais tarde, o pedido, já concretizado, de retirada do nome Pitanguy do instituto concebido pelo próprio. “Imediatamente após a morte do meu pai, eles aprovaram uma alteração no estatuto social que excluía a participação da família. Diante de tamanha hostilidade, tornou-se impossível seguirmos juntos”, argumenta Gisela Pitanguy, que enveredou pela medicina, na área da psicoterapia. “Sem o nome do professor, a situação do instituto, ao qual ele sempre se dedicou, só piora. É muito triste ver o que está acontecendo”, lamenta o médico Francesco Mazzarone, responsável pela ação movida na 8ª Vara Cível do Rio contra o espólio do cirurgião.
Os efeitos da remoção da grife Pitanguy são sentidos na Enfermaria 38, o local que desde os anos 1950 recebe pacientes de baixa renda dentro da Santa Casa. A situação já não andava boa por lá desde 2012. Pitanguy ainda era vivo quando uma crise financeira se abateu sobre a Santa Casa e o centro cirúrgico foi interditado por falta de condições sanitárias. As operações acabariam sendo transferidas para o Hospital da Gamboa, uma unidade filantrópica associada, e assim a entidade perdeu o credenciamento do Sistema Único de Saúde para as cirurgias reparadoras — um baque e tanto para o instituto.
O número de intervenções despencou. Nos tempos áureos, a equipe chegava a fazer até 2 000 operações por ano, entre reparadoras, bancadas pelo SUS ou até mesmo de graça, e estéticas, a preços mais baixos do que os praticados no mercado. Hoje, apesar de os valores dos procedimentos seguirem mais acessíveis, a falta de estrutura não permite que cheguem a 500, 25% do registrado no passado recente.
Em 2018, para tentar reverter os obstáculos financeiros, sem o repasse do SUS e a baixa dos atendimentos, a direção tentou organizar um jantar beneficente com o objetivo de arrecadar fundos. A família, então, soltou uma nota acusando os organizadores de usar o nome do patriarca com intuito comercial, e o jantar acabou cancelado.
“Fomos surpreendidos. Estavam utilizando o nome do professor Ivo Pitanguy sem que houvesse nenhuma garantia sobre a destinação desses recursos e sem que sequer tivesse sido solicitada uma autorização”, fala Gisela. A atual gestão do serviço de cirurgia plástica da Santa Casa de Misericórdia também pede a condenação dos herdeiros por danos morais. “Não podemos pensar em ingratidão maior”, dispara a filha de Pitanguy.
Outro revés foi a decisão da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica de descredenciar a pós-graduação do instituto pouco tempo depois da morte do “professor”. “O curso não mudou absolutamente nada. Manteve-se praticamente a mesma equipe que já trabalhava junta havia muitos anos”, enfatiza Mazzarone. “Sempre fomos reconhecidos como uma das melhores escolas de cirurgiões plásticos do mundo.” Desde a década de 60, mais de 800 profissionais de 42 países se formaram no curso. Entre os discípulos famosos constam Paulo Müller (genro de Pitanguy), Bárbara Machado e Carlos Fernando Gomes de Almeida, um dos cirurgiões mais concorridos do país.
Nos bastidores, comenta-se que alguns médicos ligados à SBCP tinham interesse em assumir, sem nunca conseguir, as rédeas do instituto, que foi defenestrado definitivamente da sociedade em 2020. “Não foi retaliação. O fato é que as cirurgias estavam sendo feitas em um hospital que não se encaixa dentro dos padrões de ensino exigidos pela SBCP e pelo Ministério da Educação”, afirma o presidente Denis Calazans Loma, sobre o Hospital da Gamboa, que vinha sendo usado desde aquele 2012, com Pitanguy ainda vivo.
O império construído pelo mago dos bisturis, pouco a pouco, toma um novo destino. O terreno onde funcionava sua concorridíssima clínica, com dois imóveis — um casarão centenário de dois andares e um prédio anexo, na Rua Dona Mariana, em Botafogo —, foi vendido em 2019 por 10 milhões de reais à construtora Bait. Em seu lugar, está sendo construído o Residencial Ivo, um prédio com 36 unidades. A casa principal, onde ficava o consultório do médico, tombada pelo Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, acabou incorporada ao projeto e sediará a área de convivência do condomínio.
Sua mansão na Ilha dos Porcos Grande, localizada na deslumbrante região conhecida como Costa Esmeralda, em Angra dos Reis, hoje figura na lista de imóveis para alugar numa imobiliária de luxo a 25 000 reais a diária. A residência já hospedou nomes como Tom Cruise, Alain Delon e os astros dos Rolling Stones. Quanto à residência oficial do cirurgião plástico, traçada pelo arquiteto Sérgio Bernardes em uma área de 6 547 metros quadrados na Gávea, está à venda por 7 milhões de reais. O maior legado de Pitanguy, não há dúvida, são os discípulos que formou ao longo das mais de seis décadas em que exerceu seu ofício como poucos.