Fruto do jornalzinho lançado em 2005 por um garoto irrequieto do Morro do Adeus, o Voz das Comunidades é hoje um potente veículo de comunicação, além de polo de ações sociais, presente em pelo menos dez favelas do Rio.
Seu fundador, Rene Silva, recebeu a visita-surpresa de um vizinho na sede da instituição, no Complexo do Alemão, no fim de março. “Ele queria ajuda para comer. Não tinha um saco de arroz dentro de casa e contou que, no desespero, perdeu a vergonha de pedir”, lembra.
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A urgência do combate à fome, entre outros cruéis desdobramentos da pandemia, inspirou a criação de um gabinete de crise formado por três grupos atuantes na região: além do Voz das Comunidades, o Coletivo Papo Reto e o Mulheres em Ação no Alemão.
Desde a chegada da Covid-19, a mobilização de pessoas e entidades locais ganhou força nas favelas cariocas, preenchendo a lacuna deixada pelo poder público e resolvendo no ato, sem o freio da burocracia, os problemas que se apresentam a toda hora.
Capitaneado por jovens com menos de 30 anos, em sua maioria, o trabalho voluntário de distribuição de informação, cestas básicas e kits de higiene e limpeza vem sendo desenvolvido de maneira incansável. Milhares de famílias foram atendidas entre abril e junho, um período duro.
Nada mau, levando-se em conta que, ao longo dos últimos três meses, a política oficial andou errática, justamente quando tanto se precisou dela. O Brasil chegou ao terceiro ministro da Saúde, mesma marca atingida no posto de secretário estadual da pasta no Rio, onde casos de desvios na área não param de aparecer.
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Enquanto isso, a garotada foi à luta. Rene Silva, do alto de seus 26 anos, é o veterano da turma. Ganhou visibilidade em 2010, quando transmitiu notícias exclusivas, de dentro do Complexo do Alemão, na cinematográfica ocupação do conjunto de favelas pelas forças de segurança.
Hoje, o gabinete de crise do qual faz parte tem 32 voluntários dedicados ao trabalho exaustivo de correr atrás de recursos, orientar a população e espalhar ajuda por becos e vielas. Até 17 de junho, mais de 40 000 pessoas haviam sido contempladas com itens como cestas e kits de higiene (10 094), galões d’água (12 200) e máscaras de pano (8 500). Essa rotina se repete cidade afora.
O esquema de mutirão, velho conhecido nas comunidades mais carentes, mobiliza entidades como o Jacaré contra o Corona, na favela do Jacarezinho, a Frente CDD, na Cidade de Deus, e a Rocinha Resiste.
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Bianca Peçanha, 21 anos, estudante de geografia, é coordenadora do curso de pré-vestibular Núcleo Independente Comunitário de Aprendizagem (Nica), que forma o Jacaré contra o Corona ao lado de outros três coletivos. A proposta inicial da frente, apoiada por cinquenta voluntários, era atender 200 famílias em situação de maior vulnerabilidade. Até 22 de junho o número tinha saltado para 1 600.
As dificuldades não são poucas. Bianca dá um exemplo da pobreza extrema flagrada na área do Jacarezinho conhecida como Carandiru – uma fábrica abandonada ocupada por 78 famílias. “Lá, pessoas de 26 das quarenta famílias atendidas apresentavam sintomas da Covid-19. As casas são delimitadas por cortinas. É razoável imaginar que a contaminação tenha sido generalizada”, diz.
Após noventa dias fazendo entregas e conversando com moradores da Cidade de Deus, Jota Marques, 28 anos, chama atenção para outra questão preocupante – a subnotificação. “O número de casos com que esbarramos é bem maior do que o exibido nos painéis oficiais. Além disso, o aumento de outras doenças de fundo respiratório também está ligado à Covid, é evidente”, observa.
Jota (“Nem assino mais João Paulo”, explica) cumpre mandato como conselheiro tutelar e, há dez anos, fundou o coletivo Marginal, voltado para a educação popular. No dia a dia da Frente CDD, somando esforços com outras entidades locais e cinquenta voluntários, ajudou no atendimento de 7 000 famílias da região até meados de junho.
Na linha de frente em áreas mais carentes, agentes de saúde de clínicas da família e Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) oferecem auxílio fundamental, assim como os profissionais da assistência social.
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“Temos relação excelente com o pessoal de enfermagem nos postos de saúde, com os servidores públicos de ponta, mas nenhuma aproximação com as autoridades”, resume Jota Marques. Essa falta de contato leva a situações inusitadas, como a dos tomógrafos da Cidade de Deus e da Rocinha.
Essenciais para o diagnóstico da doença, os equipamentos ganharam solenidades de inauguração com a presença de Marcelo Crivella, mas, um mês depois da visita do prefeito, seguiam sem funcionar. O choque de dura realidade tem como um de seus componentes as frequentes operações policiais, que, movidas por confronto e pela brutalidade, resultaram na morte de cinco pessoas por dia neste ano – o total de 741 óbitos é o maior dos últimos 22 anos.
A óbvia incompatibilidade entre a distribuição de cestas básicas e tiroteios levou o ministro do STF Edson Fachin a determinar, em 5 de junho, a suspensão de operações policiais em favelas do Rio durante a pandemia. O ritmo diminuiu após a decisão em Brasília. “Num dia em que estávamos distribuindo 200 cestas na Cidade de Deus fomos surpreendidos por tiros e encurralados. Os moradores nos acolheram em suas casas, apesar do risco de contágio”, conta Jota Marques.
Michel Moreira, 29 anos, o Capitão, organiza há dois anos a Roda Cultural da Rocinha, projeto de conscientização através do hip-hop. Na luta contra o coronavírus, engrossou a turma de 100 voluntários, organizados por turnos diários, do coletivo Rocinha Resiste. “Entregamos pouco mais de 1 000 cestas básicas por semana nesses três meses, além de mais de 10 000 máscaras. Os tiroteios preocupam, mas o mais triste é que, para o morador da favela, confrontos são a regra”, comenta Michel.
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O trabalho heroico das atuais frentes de jovens moradores das comunidades cariocas é continuação da história de entidades como a Central Única das Favelas (Cufa) – que, fundada em 1999, também vem dando enorme contribuição ao combate à epidemia.
“A fratura sempre existiu, mas agora está exposta. Na crise, esses coletivos de jovens, muitos deles beneficiados pelo acesso à universidade estendido a pretos e favelados nos últimos quinze anos, estão aprendendo sobre gestão, logística e vão usar isso adiante”, projeta Celso Athayde, fundador da Cufa e, provando o que prega, hoje dedicado a múltiplos empreendimentos sociais como CEO da Favela Holding.
Coordenadora do Nica, o pré-vestibular no Jacarezinho, Bianca Peçanha alimentava o plano de construir uma biblioteca, mas o projeto foi interrompido. “O que me entristece é que ainda temos de correr atrás do mínimo. Já gastamos com cestas básicas mais de 100 000 reais de doações. Imagina ter 100 000 reais para fazer uma biblioteca?”, provoca.
“Entre os moradores, durante a pandemia, ampliou-se a percepção de que fazemos parte de um território abandonado. Isso abre a janela para pensarmos a política na cidade, discutirmos como nossa vida é atravessada por decisões ou pela falta delas”, diz Jota Marques, o jovem ativista da Cidade de Deus. A favela tem força – e pressa.
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