Manto Tupinambá x canhão histórico: porque é difícil devolver bens pilhados
Polêmica sobre recuperação de peças escancara briga entre países ricos e pobres por heranças culturais
Uma das mais conhecidas heranças culturais da civilização egípcia é o busto da rainha Nefertiti, uma peça de calcário com aproximadamente 3400 anos. Desde que foi encontrada pelo arqueólogo alemão Ludwig Borchardt, em 1912, a escultura se encontra exposta em um museu de Berlim, após passar por outros locais da Alemanha e se tornar um símbolo cultural da capital do país e de suas posses arqueológicas durante o início do século passado. Em contrapartida, a população do antigo reinado de Nefertiti deseja que a peça retorne ao lar. A disputa entre egípcios e alemães pelo icônico busco representa um embate que cresce nos fóruns internacionais: o retorno de bens levados em épocas passadas, na maioria dos casos à revelia dos proprietários, aos seus lugares de origens.
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Embora amparado por tratados de instância internacional, o destino de bens culturais saqueados no passado se arrasta em negociações sem solução. Recentemente, governo grego aumentou o tom da exigência pela volta dos mármores do Parthenon que estão retidos na Inglaterra. Nigéria, Congo, Gana e outros países africanos seguem o mesmo caminho.
Os países ricos prevalecem nas negociações com uma postura de não devolver os bens, apesar de convenções e tratados internacionais buscarem resolver a situação desde 1954. Após quase 70 anos, ainda não há mecanismos jurídicos que permitam repatriar objetos não configurados como oriundos do tráfico. Em consonância, o diplomata Bruno Zétola, representante do Brasil na Unesco, explica que a organização atua para um acordo bilateral favorável às nações envolvidas nas disputas.
Papel do Brasil
O Brasil também assume uma participação relevante no tópico. O país espera receber, no início de 2024, um Manto Tupinambá envolto em polêmicas. Originalmente chamado de “Assojaba Tupinambá”, a vestimenta própria de rituais religiosos é composta por penas de aves brasileiras e remonta ao início do século 16. A peça é uma das onze remanescentes no mundo e atualmente pertence ao Museu Nacional da Dinamarca, em Copenhague. A expectativa é de que ele seja transferido para o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, no centro da cidade. A devolução do manto marca um avanço na discussão dos bens pilhados.
Fósseis encontrados no território nacional também são visados no exterior. No último ano, um grupo de paleontólogos identificou pelo menos 90 ossos levados ilegalmente para outros países. Segundo os pesquisadores, o número de itens pode ser ainda maior, já que o levantamento se baseia apenas em publicações oficiais. Isso se dá por conta da fiscalização precária e do alto número de pesquisadores estrangeiros na Bacia de Araripe, um sítio arqueológico cravado entre Ceará, Pernambuco e Piauí.
Por outro lado, o governo brasileiro também está envolvido com a polêmica do Canhão Cristiano, obtido como troféu de guerra na batalha contra o Paraguai. A nação vizinha voltou a cobrar a repatriação da peça em agosto. Apesar disso, o bem continua exposto no Pátio dos Canhões do Museu Histórico Nacional. A presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), Fernanda Castro, detalha que o processo de remoção do objeto é complexo por problemas de logística, orçamento e de espaço. Doutor em História, Política e Bens Culturais, Rodrigo Christofoletti aponta o posicionamento brasileiro como progressista nas decisões da Unesco, mas muito conservador ao tratar da devolução dos troféus de guerra. “Manter a proeminência sul-americana sempre foi o grande desejo da diplomacia brasileira, até porque o Brasil só perde em proeminência nos patrimônios mundiais para o México”, atesta.
Questão política e econômica
O doutor em Teoria, História e Crítica da Arquitetura Marcelo Silveira acredita que a questão passa “muito menos por preceitos éticos e mais pelo poder político e, principalmente, pelo poder econômico”. Nos momentos em sala de aula na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o historiador atenta que a visão crítica e a política são temas indissociáveis neste tópico. “De tempos em tempos, as pessoas se interessam mais por determinadas questões políticas ou mercadológicas, e aí é interessante para o país que teve um bem pilhado entrar na briga”, explica. “Talvez o país nem saia vencedor na disputa, mas só de aparecer lutando e se colocando como oprimido ganha-se destaque”, acrescenta o professor universitário.
As nações insistem na criação de medidas que consigam combater o espólio de obras e outros bens. No Brasil, uma “Red List” (“Lista Vermelha” na tradução direta do inglês) alerta quais são os objetos com maior apelo no mercado ilícito internacional. Outro mecanismo bastante importante é a sujeição ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) de qualquer bem importado ou exportado do país acima de 10000 reais.
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*Jorge Ferreira e Luísa Giraldo, estudantes de Jornalismo da PUC-Rio, com orientação de professores da universidade e revisão final de Veja Rio.