Maracanã, 70 anos: uma história de sucessos que vão muito além do futebol
Estádio vem inspirando ao longo de sua história a veia artística de craques do cinema, da literatura e da música
Três gerações se lançam em uma longa discussão familiar enquanto viajam de Israel para o Rio com o objetivo de ver os jogos da Copa do Mundo de 2014. Esse é o enredo do filme Back to Maracanã, de 2018, rodado pelo premiado diretor argentino Jorge Gurvich. Quando questionado, em um festival israelense, “O que é Maracanã?”, Gurvich respondeu sem hesitar: “É o maior estádio de futebol do mundo”. Vindo de um argentino, não é pouco reconhecimento, não.
O filme coloca Gurvich na galeria dos inúmeros artistas que tiraram do Estádio Jornalista Mário Filho, que acaba de completar setenta anos, inspiração para suas criações. “Dedico um capítulo inteiro no meu livro para as músicas que falam no Maracanã”, conta o historiador Luiz Antônio Simas, que em outubro lança o seu Maracanã: uma Biografia. Está lá, por exemplo, que, no ano de 1955, Wilson Batista compunha o Samba Rubro-Negro, aquele que diz: “Flamengo joga amanhã, eu vou pra lá / Vai haver mais um baile no Maracanã”.
A canção, que enumera craques do time à época, como Rubens, Dequinha e Pavão, teve sua gravação definitiva com Roberto Silva, sendo também eternizada em vozes como a de João Nogueira, a do tricolor Gilberto Gil e a do craque-sambista Júnior. Mas hino mesmo o Maracanã tem um, de 1979: O Campeão, de Neguinho da Beija-Flor. Quem nunca ouviu seus célebres versos “Domingo, eu vou ao Maracanã / Vou torcer para o time que sou fã?”.
“A música começou a estourar no River, tradicional clube que teve seus tempos áureos nas décadas de 70 e 80. Quando eu cantei, todo mundo me acompanhou. Ganhei dois cachês só para cantar mais duas vezes”, lembra Neguinho, que jura que pensou na melodia e versos numa viagem de ônibus de “uns 35 minutos”. A consagração se deu quando a torcida Raça Rubro-Negra a levou para o Maracanã, na vitoriosa final do Campeonato Brasileiro de 1980, contra o Atlético.
Outros grandes nomes e sucessos foram movidos pela poesia que viram no estádio de tantas lembranças futebolísticas. “Além das mais conhecidas, como Fio Maravilha, o Jorge Ben compôs Cuidado com o Bulldog, que conta a história de um torcedor mordido nos fundilhos e, por isso, incapaz de se sentar na arquibancada do Maracanã”, recorda Simas.
Flamenguista fanático, Moraes Moreira, falecido em abril, também foi um frequentador assíduo do estádio, e isso se reflete em suas letras. “Só para o Zico são três músicas, além daquela que fala ‘A gaitinha vai tocar’. A gente ia nas cadeiras azuis (a famosa “numerada” da música de Neguinho da Beija-Flor), porque na arquibancada as pessoas não paravam de puxar papo, ele não conseguia ver o jogo”, conta o filho de Moraes, o guitarrista Davi Moraes. “O Maracanã era um templo importante da difusão da música brasileira. No livro, eu faço um paralelo entre o estádio e a Festa da Penha: nos dois, o samba que fosse cantado seria um sucesso no Carnaval seguinte”, lembra Simas.
Amplamente festejado, o aniversário do Maraca, em 16 de junho, foi marcado por certa melancolia. Sem torcedores, o estádio voltou a ver a bola rolando duas semanas mais tarde, em um retorno do Campeonato Carioca rejeitado por muitos dos envolvidos, como os times de Fluminense e Botafogo, em razão da pandemia. Um hospital de campanha foi inclusive montado dentro do complexo. Cartão-postal da cidade, sempre recebeu atividades diferentes do futebol, como outros esportes, shows e até uma edição do Rock in Rio, em 1991.
“O show do Kiss, em 1983, reuniu, na época, o maior público que já tinha pago para ver um show de rock. Só que a quantidade real de gente que havia lá era incalculável, porque dois portões foram arrombados. Fala-se em 130 000, 150 000”, diz Simas. Os integrantes da banda adoram aumentar essa mística, mas, oficialmente, o maior público do Maracanã foi registrado na chegada do Papai Noel, em 1978, quando as roletas contabilizaram 250 000 pessoas.
O velho estádio da arquibancada de concreto e da geral (retiradas para a Copa no Brasil por exigência da Fifa) que fervia em dias de sol é cenário de dois filmes de Luiz Carlos Barreto, frequentador assíduo desde sua inauguração ou, como se define, “um dos sobreviventes”. “Eu ia todo domingo, como jornalista e torcedor do Flamengo”, fala Barretão, aos 92 anos. “Via os jogos na Tribuna de Honra, ao lado de amigos como Nelson Rodrigues, Mário Filho, José Lins do Rêgo e Armando Nogueira. Cobri as Copas de 1950, 54, 58 e 62, e voltei do meio do caminho na de 1966, porque achei que seria um desastre para o Brasil, como foi.” Ele assina os documentários Garrincha, a Alegria do Povo, de 1962, como roteirista, e Isto É Pelé, de 1974, que dirigiu em parceria com Eduardo Escorel. “O Maracanã sempre foi muito fotogênico”, resume.
Um dos companheiros de Maraca de Barretão (que ficava do lado oposto da torcida nos Fla-Flus), Nelson Rodrigues (do Flu) é considerado pelo jornalista e escritor Sérgio Rodrigues o maior cronista do estádio. “O Maracanã tem uma mística inigualável, ele é o Coliseu nas crônicas do Nelson”, analisa Sérgio, cujo romance futebolístico O Drible, de 2013, faturou prêmios e foi editado em diversos países. “É muito importante que passagens de O Drible aconteçam lá, apenas porque é o Maracanã. Ele merecia uma obra em que fosse o personagem central, uma espécie de Corcunda de Notre-Dame, o nosso Quasímodo”, define. E a história segue.
Futebol-arte
Obras que revelam a história do setentão Maracanã:
1955
Samba Rubro-Negro, escrito por Wilson Batista e Jorge de Castro, é lançado por Roberto Silva
1962
Com imagens em preto e branco, Joaquim Pedro de Andrade traz o documentário Garrincha, Alegria do Povo
1970
Um famoso jogador de futebol é um dos protagonistas de Irmãos Coragem, novela de Janete Clair que teve um
remake em 1995
1972
Fio Maravilha, composição de Jorge Ben Jor sobre um atacante do Flamengo, é lançada por ele no disco Ben
1974
A despedida da seleção do craque de todos os tempos no Maracanã abre o documentário Isto é Pelé, de Luiz Carlos Barreto
1975
Geraldinos e Arquibaldos, um samba irônico e divertido, é uma das obras-primas do disco Plano de Voo, de Gonzaguinha
1979
Samba Rubro-Negro na versão de João Nogueira (com a letra atualizada para citar Zico, Adílio e Cláudio Adão) é
lançada no disco Clube do Samba
2012
As cenas que abrem a novela Avenida Brasil, de João Emanuel Carneiro, retratam o Maracanã dos anos 1990
2013
O Drible, romance de Sérgio Rodrigues, faturou prêmios e foi editado em vários países
2015
Geraldinos, documentário de Pedro Asbeg e Renato Martins, analisa as mudanças na reforma do estádio em 2010
2018
Back to Maracanã, filme de Jorge Gurvich, narra a história de uma família que vem assistir à Copa do Mundo de 2014
2020
O livro Maracanã, uma Biografia, do historiador Luiz Antonio Simas, está previsto para ser lançado em outubro