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Maria Ribeiro: “Eu não chorei”

"Fica proibido, a partir de agora — ou, ao menos, a partir do instante em que a agulha entra no braço — reclamar da vida", escreve a atriz e cronista

Por Maria do Amaral Ribeiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 16 jul 2021, 14h36 - Publicado em 16 jul 2021, 06h00
Maria Ribeiro, com a mão esquerda apoiada na cabeça
Maria Ribeiro: O silêncio era parte da minha família, e eu o encarava com os mesmos medo e estranhamento que dedicava ao bairro em que ela morava". (Reprodução/Instagram)
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Eu não chorei, eu não gritei, eu não fui com nenhuma camiseta temática. Mais: a cidade não era a minha, meus filhos não estavam lá, não havia música de fundo, não levei cartaz de protesto, a foto ficou ruim. Quase nada ali inspiraria uma crônica, e tudo ali inspiraria uma crônica. Minha vacina. Meu grito de guerra contra a morte, meu golpe no vírus, minha medalha olímpica, minha prorrogação na festinha.

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Foi no último dia 5 de julho. DDD do Rio Grande do Sul. Saí de Flores da Cunha, onde gravo a segunda temporada da série Desalma, e fui, de carro — e nas nuvens —, até o posto de saúde do município vizinho, Antônio Prado (posto de saúde, isso, sim, é poesia concreta!). Pelo meu fone de ouvido, o som do país que ninguém me tira: João Gilberto, Novos Baianos, Tom Zé. Pelas notificações do celular, as manchetes do país que a CPI não me devolve.

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No caminho, amarrando essas memórias à visão das araucárias da paisagem da estrada, penso em quem não chegou até aqui. Muita gente não chegou. Muita gente não vai chegar. E se esse tempo foi roubado de tantos conterrâneos (e se tornou mais caro a cada dólar roubado junto com o nosso oxigênio), fica proibido, a partir de agora — ou, ao menos, a partir do instante em que a agulha entra no braço —, reclamar da vida. Não pode mais. Pega mal. É feio, cafona, injusto.

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Há exceções, naturalmente. Duas, pra ser exata. Doença ou criança. Fora isso, a lei é clara (o.k., “a lei” ainda não existe, mas vamos combinar que, hoje, mais vale uma hashtag na mão do que um artigo da Constituição voando). A lei é clara e, principalmente, imperativa: há que aproveitar tu-do o que acontece.

E quando eu digo tudo, pandêmico leitor, é tudo mesmo. Dor de amor? Aproveita. Saudade? Idem. Raiva? Recalque? Inveja? Falta de grana? Aproveita. Qualquer sentimento que o mantenha respirando sem aparelhos — ou fazendo coisas importantíssimas disfarçadas de triviais, como ir até a geladeira procurar um doce no final da tarde ou mandar um WhatsApp pra sua mãe reclamando do seu tio bolsonarista — está imediatamente inserido no incrível pacote Premium Max “Portas da Esperança 2021”. Aproveita.

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“No caminho, amarrando essas memórias à visão das araucárias da paisagem, penso em quem não chegou até aqui. Muita gente não chegou”

É o que eu tenho feito. Não sei se por ter me acostumado a acompanhar os números dos nossos mortos com precisão matemática, ou se pela sensação — que não é sensação — de viver há um ano e meio espremida entre dois carros funerários, atualmente quase tudo me dá vontade de achar bonito.

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Levar meu filho mais velho à minha loja de discos preferida depois de 500 dias em casa, por exemplo, tem uma sensação térmica de tour pela Europa. Ouvir no quarto a Angela Ro Ro que a Amora me apresentou no carro horas antes, idem. É praticamente um show no Canecão.

Aliás, reencontrar minha amiga, a quem não via desde janeiro de 2020, foi como ganhá-­la de novo: que bom que ela existe e segue por aqui. Ver João e Bento acompanhando a Eurocopa, ir às passeatas, dormir, acordar, gostar do Omar Aziz, odiar os ministros deste governo, conhecer a fazenda da Vanessa, ver os filhos da Martha crescendo, jogar Detetive com o meu caçula, acompanhar o Greg News, exercer o meu ofício: tudo em 2021 me parece ter um carimbo de selo raro, um alerta de “se liga que não é pra sempre, garota”.

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Eu me vacinei no último dia 5 de julho e, até segunda ordem, tomo a segunda dose no fim de setembro. Ate lá — e acho que ainda por um bom tempo — seguirei, como deve ser, usando máscara e fugindo de aglomerações, mas tenho planos secretos (agora ex-secretos) de dançar sozinha todos os dias. Festa é um conceito relativo.

Escrevo esta coluna com o braço ainda dolorido da aplicação da minha AstraZeneca, dada pelo Sistema Único de Saúde do meu país em um posto de saúde de uma cidade de pouco mais de 10 000 habitantes no Rio Grande do Sul. Uma cidade linda, histórica, dona da minha carteira de vacinação.

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Eu não chorei, eu não gritei, eu não usei nenhuma camiseta temática ou de protesto. Mas eu cravei os dentes nesse rolé aqui. Se eu fosse você, também aumentava o som.

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