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Catarse na plateia

De alto teor dramático, a peça Incêndios, protagonizada por Marieta Severo, leva o público às lágrimas com uma tragédia que remete aos primórdios do teatro clássico

Por Rafael Teixeira
Atualizado em 2 jun 2017, 13h19 - Publicado em 6 nov 2013, 20h31
Fernando Lemos
Fernando Lemos (Redação Veja rio/)
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Logo na primeira cena da peça Incêndios, Marcio Vito, no papel do tabelião Hermile Lebel, faz um reiterado convite: “Entrem, entrem, entrem, não fiquem na passagem”. A fala, pelo que indica o texto, deveria ser direcionada a outros dois personagens: os gêmeos Simon (Felipe de Carolis) e Jeanne (Keli Freitas), que estão ali, na porta do escritório do seu interlocutor, para saber o que diz o testamento da mãe, Nawal Marwan, vivida por Marieta Severo. Na montagem em cartaz no Teatro Poeira, entretanto, o chamado é dirigido claramente à plateia. Nessa solução cênica do diretor Aderbal Freire-Filho, simples mas carregada de simbolismo, os espectadores é que são convocados a entrar ? não no escritório de Lebel, naturalmente, mas na história. De fato, o público embarca sem reservas na convocação. O resultado pode ser constatado ao fim de cada apresentação, quando, comovida pela pungente interpretação de Marieta, boa parte das pessoas cai em prantos despudoradamente. Como fazia muito não se via nos palcos cariocas, a reação tem se repetido em todas as sessões desde a estreia, há pouco mais de um mês. E, para chorar tanto, os cariocas precisam ter paciência. Dependendo do dia da semana, é necessário comprar o ingresso com quinze dias de antecedência. “Em 48 anos de carreira, fiz muitos dramas emocionantes, mas nenhum despertou uma comunicação com a plateia nesse grau”, assegura a atriz, uma das grandes damas das artes cênicas brasileiras.

Explicar por que determinada obra de arte emociona não é tarefa fácil. No caso de Incêndios, porém, nota-se que, embora haja pequenas ousadias, como a mistura de passado com presente em cena, não é exatamente por inovações formais que o espectador é fisgado. Ao contrário, sua força avassaladora está naquilo que o teatro clássico sempre fez muito bem: provocar catarse. O termo, derivado do grego katharsis, significa purificação ou purgação e foi utilizado por Aristóteles em sua obra Poética, há cerca de 2?300 anos, para definir o objetivo final da encenação de tragédias. Através da trajetória do herói, suscita-se no espectador terror e piedade com a finalidade de destilar os sentimentos em uma descarga emocional. “A ressonância do drama grego é inegável na peça. Ali se expõem o horror de toda guerra, a fragilidade da condição humana e sua simultânea capacidade de superação”, explica Cristina Ribas, doutora em filosofia pela PUC-Rio e autora de uma tese sobre poética trágica. O espectador mais familiarizado com o assunto vai encontrar em Incêndios ecos de diversas tragédias de Ésquilo, Eurípides e Sófocles ? desse último, especialmente Édipo Rei ?, e dizer mais do que isso seria comprometer o prazer de acompanhar a encenação até o final revelador.

Divulgação
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Escrito pelo libanês Wajdi Mouawad, radicado no Canadá desde o início dos anos 80, o texto é a segunda parte de uma tetralogia que inclui as peças Litoral (1997), Florestas (2006) e Céus (2009). Das quatro, Incêndios é a mais conhecida, graças ao longa-metragem homônimo de 2010, dirigido pelo canadense Denis Villeneuve, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Encenado originalmente em 2003, com direção do próprio Mouawad, o espetáculo conquistou uma série de prêmios importantes e foi montado em mais de quinze países, êxito ancorado em um poderoso enredo sobre a tragicidade da condição humana. Na história, Nawal passa seus últimos cinco anos de vida em estado próximo da catatonia, sem razão aparente. Em todo esse tempo, ela não pronuncia uma única palavra ? a não ser uma frase enigmática, dita certa vez a uma enfermeira. Após a sua morte, o testamento impõe uma desnorteante missão aos filhos, a matemática Jeanne e o boxeador Simon. A ela é dada uma carta, que deve ser entregue ao pai dos dois, que se acreditava estivesse morto havia anos. O rapaz recebe outra correspondência, destinada ao irmão de ambos, que eles jamais souberam que existia.

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As missivas são o ponto de partida para uma busca que levará os irmãos à terra onde nasceu Nawal ? a julgar pela biografia do autor, presume-se que seja o Líbano. As referências ao local exato, porém, não são explícitas. O país nunca é citado e as cidades, com uma única exceção que passa despercebida do espectador, têm nome inventado. Os eventos que permeiam a história da protagonista evocam a Guerra Civil Libanesa, ocorrida entre 1975 e 1990, embora todas as passagens que remetem à história real tenham a data trocada. Essa brilhante opção de Mouawad resulta em uma universalidade que permite uma identificação ainda maior com a plateia. Convidado por VEJA RIO para assistir à peça, o médico e psicanalista carioca Moises Groisman, um dos pioneiros na área de terapia familiar no país, vê questões atávicas na saga dos Marwan: “Fica claro no espetáculo que ninguém é senhor do próprio destino. Quando os filhos descobrem o passado da mãe, adquirem uma consciência que lhes permite traçar de forma um pouco mais autônoma seus roteiros de vida. Isso é universal, todo mundo é capaz de se identificar”, analisa.

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Berço da atividade teatral no país, o Rio sempre concentrou montagens e assistiu a interpretações que balizaram o desenvolvimento da dramaturgia nacional. Há setenta anos, o Theatro Municipal foi palco daquele que seria considerado o marco zero do teatro moderno brasileiro, a peça Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, com seus três planos de ação simultânea. Em 1959, uma montagem de O Mambembe, de Artur Azevedo, estrelada pelo trio Fernanda Montenegro, Italo Rossi e Sérgio Brito, acabou entronizando-os definitivamente no olimpo das artes cênicas no país. Em 1971, o maior sucesso do Teatro Ipanema, Hoje É Dia de Rock, fez uma revolução ao dispor o cenário no meio da plateia. Mais tarde, grupos como Asdrúbal Trouxe o Trombone e movimentos como o besteirol ajudaram a firmar as bases para as produções a que hoje assistimos pela cidade (veja o quadro na pág. 42). Ainda é cedo para dizer se Incêndios entrará para esse seleto grupo de clássicos, mas a atuação de Marieta Severo já é considerada uma das mais tocantes em quase meio século de carreira. Ela criou uma heroína contida e austera em sua dor, que jamais permite que a história descambe para o dramalhão. “Não há chororô em cena, pois a peça poderia ficar melodramática. A personagem caminha nesse terreno perigoso”, explica ela. É uma façanha reservada a pouquíssimas intérpretes. É o caso, por exemplo, de Tônia Carrero, como a prostituta Neusa Sueli na peça Navalha na Carne, de 1967, de Fernanda Montenegro, no papel-título de As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, de 1982, e de Bibi Ferreira, como a passional Joana, de Gota d?Água, de 1975.

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Em se tratando de uma peça pródiga em qualidades, é curioso constatar que a montagem brasileira Incêndios teve um nascimento um tanto quanto acidentado. A ideia original de encenar o texto por aqui foi do ator Felipe de Carolis, 24 anos, que dá vida ao filho Simon. Ele conheceu a história em 2011 ao assistir ao filme canadense e perceber, nos créditos finais, que se tratava originalmente de uma obra teatral. “Naquele momento, decidi que iria montar aquilo de qualquer jeito”, recorda. O primeiro desafio foi conseguir convencer o autor a vender os direitos de encenação. No projeto enviado a Mouawad, Carolis foi ousado. Sem ter jamais trocado uma palavra sequer com Marieta (“a Meryl Streep brasileira”, segundo definiu em sua proposta) e Freire-Filho, declarou já ter garantias de que a montagem a teria como protagonista e o diretor no comando. Fechada a transação com o autor, só faltava convencer a atriz ? mas o rapaz não tinha sequer o contato. “Mandei vários e-mails para endereços que me diziam serem dela, mas todos voltavam. Escrevi para uma pessoa que trabalha com a Marieta, e não obtive retorno. Até que consegui um e-mail pessoal. Dois dias depois, tive uma resposta em que ela se dizia arrebatada pelo texto e perguntava se poderíamos fazer uma leitura.” Entre o desejo de montar e o “sim” da atriz, um ano e meio se passou. Uma vez na empreitada, Marieta convenceu Freire-­Filho, e o resto é história. Ou, para ficar no mesmo espírito da peça, obra implacável do destino.

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