De boné preto, camisa vermelha e bermuda jeans surrados, o homem de 34 anos que ilustra esta reportagem é a face visível de uma praga que se alastra no Rio: o consumo de crack. Seu retrato, captado quando fez de uma calçada em Benfica sua casa, consta do primeiro Censo realizado pela prefeitura para mapear as pessoas em situação de rua, em 2020, justamente a aferição que também deu a dimensão do uso do entorpecente que tanto destrói e mata. Do sexo masculino, negro e na faixa em que a incidência de usuários é mais alta — de 31 a 49 anos —, ele é o típico perfil em meio a 42,5% das pessoas sem domicílio que se identificam como adeptas de algum tipo de droga. No seu caso, entre os que somam 20% deste total, o mal se chama crack, composto de pasta de cocaína misturada a outras substâncias, como o bicarbonato de sódio, solidificadas para ser alojadas em cachimbos improvisados. É de fácil acesso e baixo custo. “Quando comecei, perdia a fome e o sono, mas não sinto mais onda nenhuma. Eu fumo para esquecer de todo o resto”, conta ele, que dorme sob caixas de papelão. De lá, a poucos passos, o homem vê diariamente a filha de 14 anos, que ficou com a mãe, ir e voltar da escola municipal onde estuda. “Vendi tudo o que tínhamos para comprar droga. Hoje não tenho mais nada, nem minha família”, desabafa.
Até dezembro, sai um novo Censo que vai averiguar, entre a população de rua, como evoluiu o número de usuários de crack na cidade nestes últimos dois anos. A Secretaria Municipal de Assistência Social — hoje na linha de frente da contabilidade e do atendimento aos sem teto dependentes químicos — já tem mapeadas 33 “cenas de uso” de crack no Rio. O termo é empregado para designar os grupos que consomem a droga em pequenos guetos, bem menores do que as chamadas cracolândias de São Paulo, que reúnem um número superior a 400 usuários. Mesmo com uma aglomeração menor, o que se vê no cenário carioca são desdobramentos igualmente deletérios ao entorno: a insegurança paira no ar e há elevada taxa de furtos e roubos, o que leva à desvalorização imobiliária e à degradação do espaço público. “Chegamos a ter cracolândias em Manguinhos e no Jacarezinho com uns 500 usuários, mas essas pessoas se deslocaram e houve uma pulverização”, relata a antropóloga Danielle Vallim, há mais de uma década dedicada ao tema.
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Além de ter acompanhado 27 locais de consumo de crack nas ruas do Rio, Danielle passou um ano em Nova York para elaborar um estudo comparativo e concluir seu doutorado em saúde pública. “Ainda que nos Estados Unidos esse problema seja um pouco menos evidente, tanto lá quanto aqui o uso da droga é fruto da extrema miséria”, explica a especialista, lembrando que o entorpecente surgiu e se criou na paisagem americana nos anos 1980, quando se começou a mesclar a cocaína ao éter para formar a pedra que poderia ser fumada. Muitos acidentes depois — uma vez que o produto é altamente inflamável e produziu inúmeras vítimas de queimaduras —, a substância foi substituída pelo bicarbonato. Enquanto a cocaína aspirada leva cerca de quinze minutos para fazer efeito, consumida em combustão acelera a onda alucinógena, que bate em metade do tempo. Um fator que ajuda a disseminar seu uso é o valor: a pedra de crack é muito mais barata. Ela custa cerca de cinco vezes menos do que o grama da cocaína.
As primeiras cidades a enfrentar problemas com o consumo abusivo da droga foram Nova York, Los Angeles e Chicago. No Brasil, o crack chegou cerca de dez anos mais tarde, primeiro a São Paulo. Atualmente, segundo dados da Confederação Nacional dos Municípios, já está presente em 98% das cidades brasileiras. No Rio, como na maioria delas, as estratégias de combate sempre estiveram majoritariamente ligadas à repressão policial. Só em 2020, a questão passou a ser tratada pela Secretaria Municipal de Assistência Social — antes era administrada pela pasta de Ordem Pública. “Os usuários são pessoas doentes, precisam de acolhimento”, diz a ex-secretária e vereadora Laura Carneiro (PSD). De lá para cá, as equipes da secretaria — um exército de 1 700 colaboradores formado não apenas por assistentes sociais, mas por psicólogos, educadores e advogados — somam esforços com as da Saúde nas chamadas abordagens sociais, que acontecem de segunda a domingo, nos três turnos. “Já fomos com eles a lugares como o Boulevard Olímpico, o Maracanã, o Aquário. É uma das estratégias de cuidado, para termos um outro espaço de conversa, já que no local do uso da droga muitas vezes não conseguimos conversar”, conta Fabiana Baraldo, gerente técnica do Consultório na Rua, programa de atenção primária à saúde para pessoas em situação de rua.
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Por enquanto, a maior arma contra a mais devastadora das drogas consumidas nas ruas do Rio é uma rede que conta com 2 600 vagas em unidades de acolhimento, comunidades terapêuticas e nos Centros de Atenção Psicossocial de Álcool e Drogas. O trabalho junto aos usuários é difícil e delicado, ocorre na maioria das vezes próximo a áreas perigosas da cidade, mas vem obtendo resultados expressivos. “Registramos um aumento de 120% nos acolhimentos de dependentes de crack entre janeiro e abril de 2022, na comparação com o mesmo período do ano passado”, afirma a atual secretária de Assistência Social, Maria Domingas. Para convencê-los a deixar as ruas, atuam inclusive ex-usuários como Nelson Teixeira da Rosa, de 51 anos, que vivia nas calçadas da Maré e há 21 anos abandonou o crack. “Fui abraçado e saí das ruas. Hoje eu faço isso: abraço. Muitos querem mudar, mas não encontram uma porta aberta.”
A expectativa agora é que novas portas sejam abertas para guindar os usuários da zona escura do vício. Está para ser implementada na cidade a iniciativa baseada na metodologia do Housing First, algo como “habitação em primeiro lugar”, criada nos Estados Unidos a partir de uma ideia do psicólogo Sam Tsemberis, da ONG Pathways to Housing. Com bons resultados em países como Canadá, Espanha, Portugal, França e Dinamarca, o programa foi adaptado e batizado de Lares Cariocas. Um projeto piloto da prefeitura vai subsidiar o aluguel de casas mobiliadas para dez mulheres grávidas ou com filhos pequenos, para incentivá-las a sair das ruas e livrar-se da dependência.
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“As políticas públicas precisam ser integradas e se ajustar à dinâmica da vida dessas pessoas”, avalia a assistente social Luna Arouca, coordenadora na Redes da Maré e responsável pelo Espaço Normal, um centro de convivência voltado para a população sem teto. “A solução não é simples, mas certamente não passa pela violência. Chegar com a polícia não resolve, é preciso construir vínculos”, ressalta. Está aí uma guerra que vale a pena.