Viagem surreal
Exposição no CCBB exibe o universo onírico de Salvador Dalí em 150 obras trazidas da Espanha e dos Estados Unidos
Frasista dos mais inspirados que o mundo da arte já conheceu, Salvador Dalí (1904-1989) dedicou boa parte de sua verve à autoexaltação. Certa vez, disse: “As duas coisas mais felizes que podem acontecer a um pintor contemporâneo são, primeiro, ser espanhol e, segundo, chamar-se Dalí. Ambas me aconteceram”. Em outra ocasião, escreveu: “Todas as manhãs, ao levantar-me, experimento um prazer supremo: ser Salvador Dalí”. Nem mesmo a expulsão do movimento surrealista, no fim da década de 30, por divergências com o líder do grupo, André Breton (1896-1966), foi capaz de abalar sua empáfia. Desdenhoso, afirmou categoricamente: “A única diferença entre mim e os surrealistas é que eu sou o surrealismo”. Sob certo ponto de vista, ele não estava errado. Com seus olhos esbugalhados e o indefectível bigode com as pontas viradas para cima, Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech tornou-se, de longe, a face mais reconhecível da vanguarda que escancarou o inconsciente na arte. A partir da próxima sexta (30), o público carioca terá a oportunidade de conferir de perto algumas das obras que alimentavam sua vaidade e fama gigantescas. Uma alentada exposição de 150 peças ocupará o CCBB e vai oferecer um panorama da trajetória do artista que, embora destaque sua fase surrealista, não se resume a ela. “A ideia é exibir sua evolução, suas experimentações e inovações. E, ao mesmo tempo, falar de um artista ancorado no passado, imbuído do presente e projetado no futuro”, diz Montse Aguer, antiga secretária do pintor, diretora do Centro de Estudos Dalinianos da Fundação Gala-Salvador Dalí e curadora da mostra.
Embora não seja a maior exposição do artista já realizada na cidade, a exibição do CCBB é a mais relevante e abrangente. As obras foram pinçadas das três principais instituições que guardam peças do pintor ? a Fundação Gala-Salvador Dalí e o Museu Reina Sofía, na Espanha, e o Museu Salvador Dalí, em Saint Petersburg, nos Estados Unidos. Com pequenas variações, a mesma mostra foi apresentada, em 2012, no próprio Reina Sofía e, no ano passado, no Centro Georges Pompidou, em Paris. Daqui, a exposição segue em outubro para São Paulo, mas reduzida, pois alguns trabalhos estão comprometidos com outros empréstimos. A versão carioca inclui 29 pinturas, boa parte delas da fase áurea do surrealista, entre meados da década de 20 e fim dos anos 1930 (confira destaques no quadro ao lado). Do conjunto, apenas uma tela já foi exibida no país. Estarão lá pinturas como A Memória da Mulher-Menina/Monumento Imperial à Mulher-Menina (1929), uma das muitas homenagens que Dalí prestou a Gala, sua mulher e musa inspiradora, e O Sentimento de Velocidade (1931), na qual reúne alguns objetos recorrentes em sua iconografia, como rochas, sapatos e relógios. Oitenta desenhos e gravuras, além de documentos e fotografias, completam o conjunto, cujo valor, especula-se, gira em torno de 170 milhões de dólares. A cereja do bolo é uma réplica da Mae West Room, instalação em forma de sala, construída no museu de Figueras e inspirada na famosa atriz americana. É lá que os visitantes poderão fazer seus selfies (os retratos para compartilhar nas redes sociais). “Já estou prevendo duas filas: uma para entrar e a outra só para ver essa obra”, diz Marcelo Mendonça, gerente-geral do CCBB carioca, para quem a mostra pode ser a mais visitada da história da instituição.
Considerando a gigantesca popularidade de Dalí, a previsão não é exagerada. Para se ter uma ideia, no Centro Pompidou, a exposição atraiu nada menos do que 790?000 visitantes. Nos últimos quatro dias, a instituição ficou com as portas abertas 24 horas por dia pela primeira vez em sua história, para atender à demanda. Foi a segunda mostra mais visitada do museu parisiense desde a sua fundação, perdendo apenas para uma, de 1979, do próprio Dalí. Como se explica tamanho apelo? Editor de arte da BBC, o inglês Will Gompertz arrisca uma razão que não tem exatamente a ver com o artista, mas com o termo que batizou o movimento do qual ele fez parte do início dos anos 20 até sua expulsão, na década seguinte. “De todos os movimentos da arte moderna, é sobre o surrealismo que a maioria de nós acredita ter um grau razoável de conhecimento”, escreveu ele no livro Isso É Arte? (Editora Zahar). “Tanto que o termo entrou no léxico do dia a dia, o mais das vezes em sua forma adjetiva: surreal”, aponta.
Paralelamente à relevância do movimento, o fato é que Dalí é um dos pintores mais reconhecíveis da história da arte. Sua aparência propositadamente bizarra praticamente se fundia com o visual exuberante de suas obras. O comportamento igualmente extravagante, se, por um lado, desgastou sua reputação junto à crítica, por outro, firmou seu êxito comercial e seu status de celebridade. Tornaram-se famosas suas loucuras (para muitos, puro marketing pessoal). Certa vez, exigiu dos funcionários de um hotel em Paris que entregassem um cavalo em seu quarto. Dono de uma obra polivalente, com pinturas, ilustrações, gravuras e esculturas, investiu em outras áreas além das artes plásticas. Ao lado de Luís Buñuel, dirigiu os filmes O Cão Andaluz (1929), marco do cinema surrealista, e A Idade do Ouro (1930), e desenhou as cenas de sonho do longa Quando Fala o Coração (1945), de Alfred Hitchcock. Chegou a escrever um roteiro para um filme dos irmãos Marx, jamais realizado. Concebeu cenários e figurinos para espetáculos de artes cênicas. Mas também se bandeou para ações menos nobres: apareceu em programas populares de televisão, além de ter desenhado o vidro de perfume que leva o seu nome. “Muito antes de Andy Warhol causar impacto com a pop art e seu estilo inconfundível, ele já havia enveredado pelo caminho do culto à fama, muito comum hoje em dia entre artistas como Damien Hirst ou Jeff Koons”, diz a marchande Silvia Cintra.
É inegável, entretanto, que o talento de Dalí ultrapassa sua notável capacidade de chamar atenção sobre si mesmo. Mesmo os críticos mais conservadores, que torciam o nariz para sua persona extravagante, reconhecem isso. Robert Hughes, renomado crítico da revista Time, morto em 2011, costumava dizer que, apesar de todas as ressalvas, as obras entre 1929 e 1936 são de qualidade absolutamente inquestionável do ponto de vista técnico e criativo. Crianças e adultos, pobres e ricos, neófitos e especialistas em artes plásticas, qualquer pessoa é capaz de estabelecer algum nível de comunicação com sua vasta produção, sem necessidade de conhecer a barafunda de conceitos com que costumava explicar o sentido de suas imagens oníricas. “Pode-se achar o que for do conjunto de sua obra, mas o fato é que ele foi um exímio desenhista e um pintor de enormes recursos”, analisa Guilherme Gonçalves, sócio da Nau Consultoria de Arte. “Sua técnica minuciosa, quase neoclássica, une-se a um lado mais conceitual que viria a ser dominante na arte contemporânea.” Também reforça esse apelo o lado mais divertido de trabalhos como a instalação Mae West Room e a litografia Lincoln in Dalivision, que, de perto, mostra Gala olhando o mar e, de longe, revela um retrato do presidente americano Abraham Lincoln. “Ele representou o ápice da ideia de arte total, resultado da justaposição de obra e personagem, de vida privada e pública”, diz a curadora Montse Aguer. Não se poderia esperar outra coisa de quem utilizou os próprios desvarios para encantar.