Na cozinha da mansão na Joatinga, dois cestos enormes abarrotados de laranjas chamam atenção. São ingredientes da salada e do suco preferidos do morador ilustre do imóvel, que circula por ali de meias, moletom e camisa xadrez. Nesse figurino bem diferente das casacas em que se enfia diante de plateias no mundo inteiro, o pianista Nelson Freire se sente completamente à vontade no endereço que um dia pertenceu ao ator Reginaldo Faria. Ele divide a ampla construção voltada para a praia com dois amigos, três cachorros da raça boxer e quatro pianos. É o refúgio onde o mineiro de Boa Esperança se recolhe após cada apresentação internacional e onde se materializa um longo vínculo com o Rio, cidade que é parte de sua vida desde os 6 anos. No sossego à beira-mar, Freire se prepara para grandes compromissos, como o que tem marcado para quarta-feira (17). Às vésperas de completar 70 anos ? o aniversário é no dia 18 de outubro ?, ele volta ao Theatro Municipal para um concerto que se anuncia histórico. Tocará pela primeira vez sob a regência do russo Vladimir Ashkenazy, lenda do piano e maestro de prestígio internacional, à frente da londrina Philharmonia Orchestra, conjunto com quase sete décadas de tradição. No programa, vai solar o Concerto Nº 5, “O Imperador”, de Beethoven, que já interpretou no mesmo palco há quase sessenta anos.”Obras repetidas são uma metamorfose constante, o importante é sentir a nova apuração e transmitir isso”, diz.
O pianista vai mostrar, não há dúvida, uma versão da peça de Beethoven bem diferente daquela que apresentou no Municipal em 1957, ainda aos 12 anos, no 1º Concurso Internacional de Piano do Rio. Caçula entre quase cinquenta concorrentes da competição, o garoto conquistou o nono lugar e a admiração de uma jurada importante, Guiomar Novaes (1895-1979), raro nome do piano brasileiro a construir uma carreira internacional antes dele. Do presidente Juscelino Kubitschek, ganhou uma bolsa para estudar em Viena. “Recebi uma bolada e gastei tudo”, conta. Na volta ao Brasil, a dura realidade. “Aos 18 anos, passei um momento muito difícil e pensei até em desistir.” Mais uma vez, o caminho foi o Municipal carioca. Diretor da casa na época, Adolfo Celi (1922-1986) ofereceu ao jovem promissor um espaço na programação. Detalhe: o grande ator italiano era cliente do gerente de banco José Freire Silva, pai do instrumentista. Quatro anos depois, em 1967, Freire debutava em Londres, onde o jornal The Times o definiu como um “jovem leão do teclado”. No ano seguinte, estreou em Nova York, junto com a respeitável filarmônica local. Cumpria-se assim o destino do menino-prodígio cuja família deixou o interior para vê-lo brilhar mundo afora.
Os Freire desembarcaram em Ipanema em 1950, quando Nelson tinha 6 anos. Foram morar na Rua Redentor, onde tinham como vizinho o marechal Eurico Gaspar Dutra, presidente do Brasil de 1946 a 1951. Encantado, depois de ouvir o menino tocando O Guarani, o militar mandou instalar um telefone como presente na casa da família. Logo ao chegar, o molecote de ouvido notável impressionou membros da Escola Nacional de Música e da Rádio Nacional, episódio que rendeu matéria no jornal Diário de Notícias em 28 de maio de 1950.
“Peguei a cidade na melhor época”, recorda o instrumentista, saudoso dos mergulhos na praia e das idas com os pais à antiga Sorveteria das Crianças e ao Bob?s, ambos na Rua Visconde de Pirajá. Hoje ele evita se distanciar do Joá, preocupado com a violência e os engarrafamentos. Quando muito, visita uma feira orgânica na vizinhança.
Em seu lar carioca, pratica sua arte cerca de duas horas por dia, descansa na rede da varanda e relaxa assistindo à sua coleção de mais de 200 filmes. A perspectiva de viajar o aborrece. “Para começar, não sei fazer mala. Sou de Libra, fico na dúvida, acabo levando tudo e não usando nada.” No avião, faz questão de entrar com o pé direito e, caso desça na pista, desembarcar seguindo o mesmo ritual. Ossos do ofício, e do sucesso, a agenda de setembro a novembro traz datas na Colômbia, no México, no Japão, na Inglaterra, na Espanha e na França. Resta o conforto de saber que, na volta, sempre haverá o pouso seguro com magnífica vista para o mar.