Chora, Nem
Entenda como o traficante Antônio Bonfim Lopes, o Nem, mantinha a maior favela da cidade sob seu controle. Por mês ele faturava 10 milhões de reais com o tráfico de drogas na favela da Rocinha
O traficante número um do Rio, Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, foi preso na Lagoa na noite desta quarta (9). O chefe do tráfico de drogas na Rocinha foi encontrado por policiais do Batalhão de Choque da PM no porta-malas de um Corolla preto, em frente ao Clube Piraquê. Segundo a polícia, ele viajava com mais três homens, que também foram presos. Um deles disse ser funcionário do consulado da República do Congo, o segundo se apresentou como cônsul honorário daquele país, e o terceiro seria advogado.
Entocado em uma área nevrálgica, em meio a bairros nobres, Nem demonstrou ser capaz de perturbar a ordem de uma forma que nenhum de seus pares do Complexo do Alemão sonharia. Sua força crescia a cada dia. Além de ter sido o responsável pelo comércio de drogas numa área rica, ele realizava o processamento de cocaína em refinarias instaladas dentro da imensa favela, atividade que lhe garantia lucros fabulosos. Agentes do 15º Distrito Policial (Gávea) estimam que ali eram processados até 200 quilos de cocaína por semana, o que renderia aproximadamente 100 milhões de reais por ano ao chefão do tráfico da Rocinha.
Dono de um exército de 200 homens armados de fuzis, pistolas, granadas e metralhadoras antiaéreas, ele dominava também a distribuição de gás, as três cooperativas de vans e o sistema de mototáxis que funcionam no morro. Retirá-lo dali, no entanto, não era uma tarefa tão simples quanto parecia. Mais do que a tropa particular à sua volta, seu verdadeiro trunfo são os 100 000 escudos humanos que vivem naquela localidade. “É muito difícil realizar uma operação e, ao mesmo tempo, garantir a integridade física dos moradores”, diz o promotor Paulo Wunder, coordenador de segurança e inteligência do Ministério Público Estadual.
As histórias de vida dos que chegam ao topo do tráfico costumam ser semelhantes. Em sua maioria, eles se iniciam no crime ainda crianças, começam a trabalhar como informantes, depois viram “vendedores”, “soldados” e, impulsionados por um pendor para o crime e a perversidade, vão ascendendo na marginalidade. De certa forma, a trajetória de Nem é uma exceção. Nascido na Rocinha e filho de evangélicos, cresceu naquilo que se pode chamar de uma família de bem. Um de seus irmãos, por exemplo, é segurança em um prédio no Leblon.
Segundo moradores que o conhecem desde a infância, Nem levava uma vida normal quando jovem. Aos 11 anos, era catador de bolas na quadra de tênis do Intercontinental, o mesmo hotel que seu bando invadiu. Lá, aprendeu rudimentos do esporte, que mais tarde trocou pelo vôlei – um de seus apelidos é Jogador de Vôlei, ao lado do pomposo título de Mestre usado pelos seus acólitos mais fervorosos. Aos 15 anos, começou como contínuo na rede de televisão a cabo NET, enquanto cursava o ensino médio. Aos 17 anos, acabou envolvido em uma confusão que atraiu a ira do chefe do tráfico. Junto com dois amigos, foi impiedosamente surrado por um assalto que não cometeu. “Ele achou que se tornaria mais respeitado se entrasse no ?movimento?”, disse a VEJA RIO um colega de infância.
Em seus domínios, corria outra versão, de caráter mais condescendente, sobre sua iniciação no mundo do tráfico. Nem teria entrado para o crime depois que sua filha mais velha se curou, ainda bebê, de uma doença grave graças à ajuda do então dono do morro. Agradecido, juntou-se ao bando. “Nunca ouvi falar dessa história. Quem entra para o tráfico não tem motivo nobre”, conta outro conhecido.
Construído em cima de assassinatos, crueldade e sangue, seu padrão de vida envolvia hábitos luxuosos. Ele adora carrões importados (tem um Land Rover, um Tucson e um Mitsubishi), gosta de se vestir bem (chega a gastar cerca de 20 000 reais por mês em roupas de grife) e mora com conforto. Em março, depois de uma incursão, a polícia descobriu uma de suas residências. Se existe algo que possa traduzir a ideia de uma mansão em uma favela, é esse lugar. Decorada nas cores de seu time do coração, o Flamengo, a sala tinha TV de plasma e home theater. Em meio a uma profusão de espelhos, reluziam no bar garrafas de uísque escocês. No quintal, um deque construído ao lado da churrasqueira abrigava uma banheira de hidromassagem.
O chefão da Rocinha também é absolutamente aficionado ao convívio com famosos. Não perde nenhuma oportunidade de se aproximar de celebridades. É notória sua amizade com um jovem sambista, a ponto de ambos usarem o mesmo tipo de cordão de ouro no pescoço, com um pingente de São Jorge matando um dragão. Também faz questão de exibir a camiseta autografada do Flamengo que ganhou do jogador Vagner Love, frequentador de bailes na região e pivô de um controverso episódio ocorrido no início do ano.
A disputa pelo poder na maior favela brasileira sempre foi recheada de intrigas e traições. Nem conquistou o comando há cinco anos, ao lado de outro traficante, João Rafael da Silva, o Joca. Juntos, eliminaram os quatro potenciais sucessores de Eriomar Rodrigues Moreira, o Bem-Te-Vi, assassinado em 2005. Por dois anos, a dupla se entendeu bem. Eles dividiram o morro em dois, um operava na parte baixa e o outro na alta. Com o tempo, o acerto foi dando margem a desentendimentos e cresceram os boatos de uma nova guerra. Joca, suspeitando de que o parceiro pretendia assassiná-lo, decidiu fugir.
São famosos os “julgamentos” que ele conduzia. A polícia gravou recentemente ligações telefônicas em que membros do seu bando comentam um desses acontecimentos. Nessas conversas, às quais VEJA RIO teve acesso, o réu era acusado de ter emprestado uma arma do tráfico a uma terceira pessoa, que, acidentalmente, se feriu e acabou morrendo. A sentença, nesse caso, foi leve: só uma surra. No entanto, quando a suspeita envolve traição, o juiz costuma ser implacável e o réu invariavelmente paga com a vida. Numa conta conservadora, o criminoso é responsável pela morte de pelo menos cinquenta pessoas.
Sustentado pelos cariocas que consomem drogas, o poder paralelo que criou sobrevive apoiado em dois pilares: a corrupção de uma parte da polícia e a cumplicidade de alguns moradores. Por duas vezes, agentes estiveram a um passo de prendê-lo, mas, avisado por seus informantes, Nem conseguiu fugir. Para calar delatores e angariar simpatia, ele costumava distribuir dinheiro e benesses. Em média, são 5 000 cestas básicas todos os meses. Não raro, paga passagens aos favelados para que visitem parentes Brasil afora. Também proporcionava tratamentos médicos, dentários e, nos grandes eventos, sempre se faz presente.
Na festa de Natal do ano passado, chegou a gastar 21 000 reais no aluguel de brinquedos, videogames, pula-pula e mesas de pingue-pongue. Em troca, claro, exige fidelidade canina. Nas eleições, por exemplo, todos devem votar no candidato escolhido por ele. Em 2008, com base nessa estratégia, conseguiu eleger o vereador Claudinho da Academia, do PSDC. Sabidamente um comparsa do traficante, o político morreu há dois meses, vítima de um ataque cardíaco. Neste ano, um dos poucos com autorização para fazer campanha por lá é André Lazaroni, do PMDB, que sonha em conquistar uma vaga de deputado estadual.
O relacionamento com o comércio local também é amistoso. Em geral, o bando não cobra “proteção” dos negócios instalados na região. Mas nos meses anteriores ao pleito pede contribuições compulsórias, com valores de 5 000 a 10 000 reais, para os nomes indicados.
Os acontecimentos em São Conrado provocaram uma sensível mudança no clima da Rocinha, que está bem mais tenso do que o habitual. Algumas áreas foram isoladas com barricadas de pneus velhos e carcaças de eletrodomésticos. A resistência preparada para uma eventual invasão inclui adolescentes armados de fuzis na linha de frente. A estratégia é simples: se a polícia matar algum deles, os moradores descerão para o asfalto em protesto. Membro da facção criminosa Amigos dos Amigos (ADA), Nem não tem muitas opções. Além do morro de origem, seus domínios incluem as favelas do Vidigal, do Parque da Cidade e o conjunto habitacional Cruzada São Sebastião, no Leblon (todos sem condições de abrigá-lo e ao seu bando). Ao contrário do que acontece com alguns traficantes, ele dificilmente encontraria guarida em outras áreas da cidade. Como um gato acuado, restaria a ele apenas a possibilidade do ataque – o que poderia trazer consequências desastrosas, dadas as peculiaridades do local. “O problema só vai ser resolvido quando conseguirmos conquistar o território e nos instalarmos por lá. Se simplesmente tirarmos o Nem, outro assumirá o lugar dele e o problema continuará”, diz o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame. Dentro do programa de instalação de unidades policiais pacificadoras, a Rocinha rivaliza com o Complexo do Alemão em termos de magnitude. A estimativa é que pelo menos 1 800 homens sejam necessários para participar dessa ocupação. “Vamos manter nosso cronograma. Tenha confronto ou não”, afirma o secretário, que na semana passada recebeu o apoio financeiro de seis empresas para sua empreitada. “Começamos, agora vamos até o fim.” É isso que os cariocas desejam e é disso que tanto necessitam.