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O cronista visual da cidade

Exposição no Centro de Arte Hélio Oiticica resgata o legado de Newton Rezende, pintor que retratou o cotidiano do Rio entre os anos 60 e 80

Por Rafael Teixeira
Atualizado em 5 jun 2017, 14h03 - Publicado em 24 abr 2013, 18h49
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  • Ao longo da história da arte brasileira, poucos artistas conseguiram desenvolver uma trajetória independente e, ao mesmo tempo, relevante. Autodidata, o paulistano Newton Rezende (1912-1994) ingressou nesse seleto grupo sem aderir a movimentos, manifestos e correntes. Admirado por colecionadores, respeitado pelos críticos, o pintor, no entanto, acabou esquecido pelo público depois da sua morte, aos 82 anos, após uma vida um tanto atribulada ? casou-se duas vezes com a mesma mulher, manteve casos extraconjugais e tinha um apreço excessivo por bebida que lhe custou uma grave lesão neuromotora. Essa injustiça pública poderá ser corrigida a partir do próximo domingo (28), quando será aberta à visitação, no Centro de Arte Hélio Oiticica, uma retrospectiva em homenagem ao seu centenário (veja mais informações em Exposições, pág. 70). Trata-se da primeira individual dedicada a Rezende desde 1990. Estarão reunidos 93 trabalhos, boa parte do auge de sua produção, entre as décadas de 60 e 70. Na maioria deles, imperam a riqueza cromática, a avassaladora profusão de detalhes e a técnica minuciosamente laboriosa pela qual Rezende se notabilizou. “É uma obra magnífica. Que esta mostra sirva para apresentar esse importante nome a pessoas que gostam de arte mas, por alguma razão, nunca ouviram falar dele”, diz o curador Leonel Kaz.

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    Quem visitar a exposição seguramente terá a atenção fisgada pelo que parece ser um olhar devotado a cenas do cotidiano. Na mesma época em que os escritores Rubem Braga, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos formavam a tríade máxima da crônica jornalística brasileira, registrando o dia a dia em palavras, Rezende tornou-se uma espécie de cronista visual. “De fato, a cidade foi uma das suas temáticas mais importantes”, afirma o dicionarista Mauro Villar, que era amigo do artista. Está na mostra, por exemplo, uma série de representações de pessoas usando o transporte público ? caso de Ônibus Rural (1969), que traz o letreiro do veículo com a inscrição São Gonçalo, indicando o trajeto da condução. Há ainda flagrantes de cenas de Carnaval, pescadores em atividade e ruas apinhadas de gente no Rio e em Niterói, lugares nos quais o pintor viveu a partir do fim dos anos 40. Imagem marcante na obra de Rezende, a barca que ele tomava diariamente para cruzar a Baía de Guanabara até a capital também aparece em nove representações. Duas delas, a propósito, têm a presença do próprio pintor, retratado por meio de uma colagem de sua fotografia.

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    Inserir-se nas próprias obras, a exemplo do que fazia o cineasta Alfred Hitchcock em seus filmes, foi apenas uma das obsessões de Rezende. Mesmo um olhar desatento é capaz de notar a reincidência de uma série de objetos nas suas criações. Gaiolas, figas, espinhas de peixe, bicicletas e pipas são exemplos de figuras que aparecem com frequência. Há ainda alguns personagens recorrentes, como as noivas. Curiosamente, antes mesmo de sua mulher, Lourdes, ser diagnosticada com um câncer de mama, que a mataria em 1972, algumas delas já eram retratadas com um seio negro. Parentes e amigos mais próximos também encontravam lugar nesse aparente caos urbano. Em Ilha Submarina (1983), Rezende pintou um barco navegando em direção à Ilha Itaoquinha, a leste de Paquetá, que pertencia à galerista Giovanna Bonino. Além de mais uma noiva, aparecem o filho da marchande, Oswaldo Chateaubriand (hoje um dos maiores colecionadores dos trabalhos de Rezende), o artista cearense Aldemir Martins e a própria Giovanna, na proa da embarcação.

    Egresso da publicidade, Rezende conciliou suas carreiras em arte e propaganda durante anos. Não à toa, várias de suas telas exibem marcas de produtos, como pilhas e carteiras de cigarros, que evocam sua profissão anterior. Mas foi só em 1966, aos 54 anos, depois de ser descoberto por Giovanna, dona da Galeria Bonino, então uma das mais prestigiadas do Rio, que Rezende deu sua guinada profissional. Encantada com sua produção, ela se dispôs a pagar um salário simplesmente para que ele se dedicasse à arte ? mesmo que, em algum mês, ele eventualmente não produzisse nada. Nas exposições, as melhores peças eram penduradas, mas a própria Giovanna as comprava e dizia aos interessados que já haviam sido vendidas. O empenho da galerista acabou transformando Rezende em um dos pintores brasileiros mais requisitados dos anos 70, atraindo admiradores para trabalhos pouco convencionais para a época. Ora Rezende criava texturas com o uso de materiais como terra, moedas e parafusos sobre a pintura, ora fazia colagens de fotografias, revistas e jornais. “Ele tinha um indiscutível domínio da técnica, que não se encaixava na arte contemporânea, na qual o conceito tem um peso maior”, afirma Ferreira Gullar, mais um amigo e um admirador de Rezende. “Ao mesmo tempo, vê-se que é uma obra apaixonada, feita com prazer.” Vale a pena conferir.

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