Assim que os primeiros acordes de clássicos como Magical Mistery Tour, The Long and Winding Road e Hey Jude soarem na noite do domingo 22, no Engenhão, as 45 000 pessoas que estiverem assistindo ao show de Paul McCartney testemunharão ali a realização de um sonho que quase não se concretiza. Deixada de fora da etapa brasileira da turnê Up and Coming, em novembro do ano passado, a cidade parecia definitivamente excluída do roteiro da maior lenda do rock, cuja última aparição por aqui se deu em 1990, no Estádio do Maracanã. Na época, mais de 264 000 espectadores, divididos em duas noites, espremeram-se entre gramado, cadeiras e arquibancadas para ver o músico. Detalhe: a segunda apresentação, que reuniu 184 000 fãs, entrou na ocasião para o livro de recordes Guinness como o maior público atraído por um único artista. Com uma ligação tão umbilical, era estranho não ter a chance de ver o ex-beatle de perto. Mas, graças a uma complexa operação, que exigiu nove meses de negociação e uma notável perseverança dos organizadores, 90 000 cariocas, em duas datas, poderão cantar a plenos pulmões junto com o ídolo. “O Rio não podia ficar de fora”, diz Luizinho Niemeyer, dono da PlanMusic, a empresa responsável pela vinda do astro. “Paul está muito feliz em voltar aqui.”
Encarada, talvez, como a última oportunidade de conferir Paul McCartney em ação, numa manjada jogada de marketing, a turnê Up and Coming teve sua largada em março de 2010 na cidade de Phoenix, no estado americano do Arizona. Desde então, foram realizadas dezoito apresentações nos Estados Unidos e no Canadá, oito na Europa e oito na América Latina ? três delas no Brasil. Cada uma mobiliza uma estrutura com 75 profissionais fixos e mais de 80 toneladas de equipamentos. Trazer tudo isso de volta a uma região relativamente distante, apenas seis meses depois de uma série de shows realizados no país, exigiu toda a capacidade de persuasão de Niemeyer. Sua ideia era associar a parada no Rio a duas outras a ser realizadas no Peru e no Chile. Para isso, porém, precisava convencer Barrie Marshall, o empresário de McCartney. Com o Maracanã fechado para obras, o problema era encontrar um local adequado às dimensões de um espetáculo com essa envergadura. Apesar das investidas, Marshall estava irredutível. Sem um público mínimo, que garantisse o retorno financeiro para o astro, a vinda seria inviável.
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As resistências começaram a diminuir em decorrência de um golpe do destino. Tricolor de coração, Niemeyer foi ao Engenhão assistir ao jogo que deu o título brasileiro ao Fluminense, em dezembro do ano passado. Enquanto roía as unhas, ele observava detalhes da estrutura e acomodações do lugar. Saiu convencido de que tinha finalmente encontrado a solução. Entrou em contato com o Botafogo, que administra o complexo, ligou para Marshall e conseguiu dele a promessa de uma visita. Na semana do Carnaval, o empresário inglês desembarcou por aqui e realizou sua primeira inspeção às instalações do estádio. Como costumam fazer inspetores da Fifa, andou pelas redondezas, entrou no gramado, pisou forte na grande área, passeou pelas arquibancadas e verificou os acessos, um a um. Dez dias depois, mandaria um e-mail dando o seu aval e pedindo uma lista de adaptações.
Construído para sediar os Jogos Pan-Americanos em 2007, o Estádio Olímpico João Havelange é um complexo esportivo moderno e confortável. Para receber McCartney, no entanto, o cenário vem passando por alguns retoques. Entre eles está o alargamento das rampas que dão acesso ao gramado. Com largura original de 6 metros, elas agora estão com 8, uma maneira de facilitar a chegada e, principalmente, a saída do público. Outras intervenções procuram atender à chamada “bíblia de Paul”, uma espécie de apostila, de 100 páginas, com as exigências do cantor. Na parte inferior do setor oeste, por exemplo, está sendo construído o supercamarim para ele, com 500 metros quadrados. Subdividido em lounge, área de figurinos e área privativa, o local foi batizado pelos funcionários da PlanMusic de caixa-forte. Ali, o isolamento acústico é impecável e o acesso só se dá por meio de uma porta com fechadura eletrônica, acionada por senha. Lá dentro, muitas nozes e chá. Apenas vinte pessoas estão autorizadas a entrar.
Desde o assassinato de John Lennon, em 1980, McCartney tornou-se obcecado pela própria segurança. Sua chegada é cercada de segredos e ele evita todo tipo de contato, apesar de ser extremamente caloroso e simpático com os fãs em suas apresentações. O astro desembarcará no Aeroporto Tom Jobim, vindo de Londres, em jato particular no sábado, na véspera do primeiro espetáculo. Os organizadores só serão avisados uma hora antes do pouso da aeronave e ele seguirá direto para o hotel Copacabana Palace. Sua equipe de apoio chega no mesmo dia, em voo comercial. Algumas esquisitices fazem parte do pacote. Vegetariano convicto, ele não comerá nenhum produto de origem animal e determinou que as lanchonetes do estádio ofereçam ao público opções desse tipo de dieta. O Bob?s, por exemplo, venderá saladas, o Banana Café, pastel de palmito, e a Funny Pop deverá preparar um croissant de espinafre. Os seis automóveis Mercedes-Benz que servirão à banda e ao cantor não poderão ter nenhum revestimento ou acabamento de couro. Foram programados três trajetos entre Copacabana e o Engenho de Dentro. Minutos antes da partida do comboio será sorteado o motorista brasileiro que transportará McCartney. “Os pedidos da sua equipe fazem um show do Roberto Carlos parecer coisa simples”, diz o engenheiro Francisco Dourado, diretor de produção e logística do espetáculo.
Aos 68 anos de idade, Paul McCartney é o fiel depositário do legado do maior grupo de rock da história. Dono de uma fortuna pessoal estimada em 1,5 bilhão de dólares, atraiu até agora 1,2 milhão de fãs à turnê Up and Coming. Ela é um fenômeno, que tem se beneficiado de um novo impulso da beatlemania, principalmente entre os mais jovens. O lançamento de videogames interativos com músicas do grupo, versões remasterizadas das gravações originais e ainda a liberação das canções digitalizadas para venda pelo iTunes reacenderam o interesse pelo quarteto de Liverpool. Mas a apresentação está longe de ser uma ode a esse passado. Quem for ao Engenhão terá a oportunidade de conferir ao vivo um novo arranjo para Something, de George Harrison, cujo início é levado apenas por um ukelele (instrumento de corda típico do Havaí). Também poderá se deslumbrar com o já clássico espetáculo pirotécnico de Live and Let Die, música de sua carreira-solo, composta em 1973 para o filme homônimo, do agente secreto James Bond. No primeiro refrão, aos trinta segundos (e também quando ele é repetido, aos dois minutos e quinze segundos), são acionados, por computador, seis lança-chamas na boca de cena, e, ao mesmo tempo, começa um foguetório na parte de trás do palco. O baterista Abe Laboriel Junior certa vez foi chamuscado por faíscas no rosto, mas nunca ninguém se machucou gravemente com o truque.
As duas exibições de Paul McCartney no Engenhão, as primeiras a ser feitas ali, recolocam o Rio na rota dos grandes espetáculos. Se antes éramos bem servidos em casas para até 2 000 pessoas (Vivo Rio) e entre 10 000 e 15 000 (HSBC Arena), estavam faltando neste momento espaços confortáveis para apresentações mais ambiciosas, de nível internacional. A Praça da Apoteose vinha suprindo parte dessa demanda, mas o Sambódromo, a exemplo do Maracanã, passa por reformas. A Praia de Copacabana, que abrigou eventos inesquecíveis como o do grupo Rolling Stones em 2006, com 1 milhão de fãs, presta-se apenas a produções gratuitas, totalmente bancadas por patrocinadores. Com capacidade de 45 000 pagantes, o Estádio Olímpico João Havelange se encaixa perfeitamente dentro do perfil de mega-shows. Depois da passagem de McCartney por aqui, estrelas como o ídolo adolescente Justin Bieber e a cantora Lady Gaga, chamarizes de multidões, passam a ter uma nova base potencial para suas produções. Uma ótima notícia para a cidade e para seus moradores, que não precisarão mais viajar até São Paulo para ver os ídolos ao vivo.