Em momentos de aflição, os católicos mais fervorosos do Rio costumam pedir ajuda a uma galeria de santos. Alguns são verdadeiros campeões de súplicas, como São Jorge e São Sebastião, mas o panteão da fé carioca é democrático o suficiente para abrigar também uma garotinha nascida em Madureira e criada em Botafogo, que morreu em 1939, aos 9 anos de idade. É Odette Vidal de Oliveira, a Odetinha, cujo túmulo, no Cemitério São João Batista, atrai uma multidão de devotos. Basta olhar para as placas de bronze e mármore em reconhecimento pelas graças alcançadas para perceber a devoção de seus seguidores. O local raramente está deserto, e é a segunda sepultura que mais recebe visitantes, atrás apenas do mausoléu da cantora Carmen Miranda. Tamanha popularidade levou a cúpula da Igreja Católica a escolher a menina como candidata ao posto de primeira santa carioca. O início do processo de beatificação, seguido pelo de canonização, já tem data oficial de lançamento, 18 de janeiro. “Em sua curta vida, ela foi um exemplo de dedicação a Cristo”, diz dom Roberto Lopes, vigário episcopal da Vida Consagrada, coordenador da Congregação para a Causa dos Santos e articulador da proposta ao Vaticano.
Entre os devotos da “santinha do São João Batista”, como Odette também é carinhosamente chamada, o que não falta são relatos de cura, intercessão em situações críticas e realização de pedidos, ainda que prosaicos. No início dos anos 1980, a recepcionista Terezinha Ferreira e Souza ouviu de um oftalmologista que uma miopia evolutiva fatalmente a levaria à cegueira. Procurou uma segunda opinião, uma terceira e ainda uma quarta. O diagnóstico era sempre o mesmo. Foi quando ela recebeu um conselho de uma vizinha para que pedisse ajuda a Odetinha. A miopia estancou, e o par de óculos que Terezinha usa é mais do que suficiente para que ela leve uma vida normal. Em 2003, o advogado Augusto Pereira sofreu um baque terrível quando aguardava sua mulher, Clara, dar à luz a filha do casal, Maria Clara. No hospital, em meio ao parto, ele foi informado pelos médicos de que a esposa havia sofrido uma grave hemorragia e não sobreviveria ao nascimento do bebê. Desesperado, ele repetiu incessantemente a oração de Odetinha, impressa em um santinho dado por sua mãe. Hoje, Pereira, de 38 anos, vive feliz com a mulher e a filha em Botafogo. A atriz Giovanna Antonelli conhecia a história da garota pela avó, devota havia muitos anos. Em 2001, quando tentava conseguir seu primeiro papel como protagonista, na novela O Clone, decidiu pedir ajuda à menina. Ela não só obteve a indicação para viver a personagem Jade como fez um sucesso estrondoso em sua encarnação da mocinha muçulmana apaixonada por um cristão clonado. “No fim da novela, fui ao túmulo e me emocionei enquanto agradecia a ajuda”, conta. “Hoje, sempre carrego a foto dela na bolsa.”
O processo que reivindica a santificação de Odetinha, iniciado às vésperas do Natal do ano passado, já enche de papéis todo um armário na Arquidiocese do Rio. No último dia 31 de outubro, a causa recebeu um impulso poderoso com a chegada de um documento chamado de Nihil obstat (nenhuma objeção, em latim) procedente do Vaticano. O certificado, que marca o início dos procedimentos formais para a beatificação e a canonização, transformou a garota em Serva de Deus, a primeira designação dada aos candidatos à santificação (veja as etapas do processo no quadro da pág. 26). A partir de agora, seis historiadores e especialistas em direito canônico devem investigar todos os detalhes de sua curta existência, pontuada por um comportamento singular e devoção irrestrita à figura de Jesus Cristo. Vão pesquisar ainda os milagres atribuídos a ela. Todo o procedimento corre em sigilo, e os responsáveis não comentam os casos analisados pelos especialistas da Congregação para a Causa dos Santos. De qualquer forma, está prevista uma grande cerimônia para marcar o início da beatificação. Os restos mortais de Odetinha serão exumados e transferidos em procissão para a Igreja da Imaculada Conceição, na Praia de Botafogo. Ali, ficarão em uma urna e poderão ser venerados pelos fiéis. “O reconhecimento da santidade dessa jovenzinha é bastante condizente com o momento que vivemos no Rio, quando nos preparamos para receber a Jornada Mundial da Juventude e a visita do papa Bento XVI”, diz dom Roberto, da Congregação da Causa dos Santos.
Nascida em 1930, filha do casal Augusto Ferreira Cardoso e Alice Vidal, imigrantes portugueses vindos da região do Porto, Odetinha não conheceu o pai (ele morreu de tuberculose quando sua mãe ainda estava grávida). Viúva, a mãe casou-se com o empresário Francisco Oliveira, também português, que se tornou pai adotivo da menina. Dono de um frigorífico e de terrenos espalhados por toda a cidade, Oliveira proporcionava um padrão de vida alto à família. Odetinha cresceu rodeada de muito conforto em uma mansão de Botafogo com vista para o Pão de Açúcar. Ali, um batalhão de empregados estava a postos para satisfazer suas vontades, entre eles um motorista designado a levá-la ao Colégio Sion, em Laranjeiras. Como toda criança, ela adorava o Carnaval, fazia suas travessuras e furava a fila do bebedouro na escola. No entanto, tinha alguns traços que a distanciavam de suas colegas. Segundo pessoas que a conheceram, possuía uma humildade, um senso de compaixão pelo próximo e uma adoração a Jesus Cristo fora do comum. Fazia questão de comer na mesma mesa das cozinheiras e do motorista, algo impensável no Rio de Janeiro da década de 30. Chamava as filhas dos serviçais para dormir em sua cama, e eventualmente se vestia como elas. Também costumava pedir ao motorista que estacionasse o carro da família longe da escola e percorria o resto do caminho a pé. “Ela tinha uma vida comum, mas um coração extraordinário”, afirma Maria Christina de Castelo Branco Pires de Sá, 82 anos, a melhor amiga de Odetinha e umas das fiéis mais empenhadas na causa da beatificação.
A Constituição Apostólica Divinus perfectionis magister estabelece que, para se tornarem santos e santas, homens e mulheres devem sobressair “pelo fulgor da caridade e de outras virtudes evangélicas”. Normalmente, são pessoas que levaram uma vida dedicada à religião e à filantropia. Odette, por exemplo, tinha especial compaixão pelos órfãos e mendigos. Numa biografia escrita por seu confessor, padre Afonso Maria Germe, há inúmeros relatos de como doava seus pertences a pedintes que lhe batiam à porta, a ponto de brigar com as empregadas que ameaçassem expulsar os mais insistentes. Precoce na iniciação religiosa, ela fez a primeira comunhão aos 7 anos de idade, embora pedisse para receber o sacramento desde os 4. Dizia-se esposa de Jesus e foi descrita por Germe como “catequizadora compulsiva”. A morte precoce acabou dando um tom extra de abnegação à fé da menina. Seu melancólico calvário, que durou 49 dias, atraiu dezenas de pessoas ao casarão de Botafogo, entre amigos e desconhecidos que desfrutavam a caridade da família. No dia 25 de novembro de 1939, exaurida pela febre paratifoide agravada por uma meningite, Odette pediu para receber a eucaristia e recitou a oração com a qual rezava o terço: “Meu Jesus, meu amor, minha vida, meu tudo”. Meia hora depois, morreu. No cortejo até o cemitério, o pequeno caixão foi carregado pelas Irmãs da Caridade de Imaculada Conceição, que comandavam um orfanato próximo à casa, precedidas por três sacerdotes. Desde então, sua sepultura passou a ser local de peregrinação.
Depois da morte da filha, os pais se tornaram ainda mais apegados à religião. Francisco doou os terrenos e o dinheiro para a construção de escolas e igrejas, como o Colégio São Marcelo, na Gávea, a Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, e a Catedral de Nova Iguaçu. Forneceu ainda toda a prataria usada no Mosteiro de São Bento e bancou a primeira Feira da Providência. Tempos depois, já na década de 60, foi a mãe, Alice, quem ajudou a salvar o Banco da Providência da falência. Diante de um pedido de dinheiro feito por seu criador, dom Helder Câmara, ela lhe deu um broche de brilhantes que usava na ocasião. “É imensa a quantidade de pessoas que se beneficiam das obras inspiradas por Odetinha”, diz a irmã Janine Fonseca, administradora do Lar São José, em Laranjeiras, um orfanato também mantido com recursos da família.
Desde os primórdios da Igreja, os santos têm papel de destaque na doutrina católica. Acredita-se que, por estarem no céu, e bastante perto de Deus, eles tenham condições de levar até Ele os pedidos dos fiéis. Assim, fariam uma espécie de intermediação das súplicas e também das ações de graça. “Os santos são um modelo de vida cristã e, com sua santidade, tornam-se mais próximos de Deus. Por isso podemos pedir-lhes que intercedam por nós”, explica o padre Jesus Hortal, reitor da PUC-Rio. O processo de canonização, antes franqueado a todos os mártires da fé e benfeitores em geral, começou a ser regulamentado a partir do século XIII. Em 1200, o papa Inocêncio III determinou que apenas o sumo pontífice tinha o poder de decidir quem era santo ou não. Desde então se instalou no Vaticano uma complexa estrutura para investigar documentos e supostos milagres, bem como uma sucessão de ritos para esse fim. Há quatro anos, o papa Bento XVI publicou novas regras para a canonização, tornando o sistema mais ágil. Um dos beneficiários do rito mais acelerado e simplificado foi seu antecessor, João Paulo II, morto em 2005 e beatificado em maio do ano passado, em Roma. Mesmo com as mudanças, é praticamente impossível prever quanto tempo pode durar todo o procedimento. “Há um grande rigor nesse processo, que é muito mais ligado à razão do que à fé”, afirma o padre João Cláudio Nascimento, que lidera a Comissão Histórica da Causa dos Santos. Há a expectativa, é claro, de que a visita de Bento XVI em junho ajude no processo, pois foi em uma vinda a São Paulo, há cinco anos, que o papa celebrou a canonização de Frei Galvão, religioso paulista, de Guaratinguetá.
Apesar de contar com o maior rebanho católico do mundo, com 173 milhões de fiéis, o Brasil ainda é um país com pouca tradição de santos. Até agora, apenas um brasileiro nato foi incorporado à galeria católica. Atualmente, 39 pessoas têm sua vida e feitos milagrosos analisados (veja o quadro ao lado), entre servos de Deus e beatos. “Eles são importantes para a religião porque a aproximam dos fiéis e servem de exemplo por sua conduta e fé mesmo diante dos piores sofrimentos”, diz o antropólogo Eduardo Refkalefsky, pesquisador de religiões da UFRJ. A expectativa é que, com seu ar angelical e fervor religioso, a pequena Odette se torne a primeira santa legitimamente carioca.