Passava das 17 horas do dia 15 de agosto quando o telefone tocou na casa da aposentada Ivonette Balthazar, de 66 anos, na Tijuca. Do outro lado da linha, uma enfermeira do Instituto Nacional de Cardiologia dava uma notícia que ela nem esperava mais: “A senhora está se sentindo bem? Então venha para o hospital, porque temos um doador”. Primeira da fila do Programa Estadual de Transplante do Rio de Janeiro (PET), a aposentada acreditava que sobreviveria por poucos meses. Preocupava‑se, por exemplo, com a possibilidade de morrer perto do Natal e causar uma tristeza profunda nos filhos e netos, em uma época que sempre fora motivo de comemoração para a família. “Eu tinha certeza de que meu tempo estava se acabando rapidamente. Só dormia sentada, porque era impossível respirar deitada. Também cortei o cabelo por não ter mais forças para penteá-lo. Cheguei a me despedir de todos os amigos e parentes e preparar a documentação para minha cremação, pois tinha certeza de que morreria em breve”, recorda ela. Poucas horas antes, a família do técnico da equipe de canoagem da Alemanha nos Jogos Olímpicos, Stefan Henze, de 35 anos, tinha assinado no Hospital Miguel Couto a autorização para a doação de seus órgãos para transplante. Henze havia sofrido um acidente de carro três dias antes e teve constatada a inatividade de suas funções cerebrais. Na partilha dos órgãos, Ivonette ficou com o coração. “É triste saber que alguém teve de morrer para eu viver mais. Por isso, eu sou profundamente grata a essa família. E a ele também, a quem agradeço sempre em minhas orações”, diz ela.
Além de Ivonette, foram convocados a comparecer aos hospitais onde se tratavam o eletricista Antônio Ivanildo Ferreira Mota, de 60 anos, o microempresário Francisco Vila de Sousa, de 48, e a pedagoga Norma Maria dos Santos Corrêa, de 62. Os dois primeiros receberam os rins do alemão, enquanto Norma recebeu o fígado. Assim como aconteceu com Ivonette, a pedagoga passou uma operação extremamente complexa, seguida de um pesado tratamento de imunossupressores, mas sofreu um sério processo de rejeição ao órgão e morreu um mês depois da cirurgia. Antonio e Francisco, submetidos a procedimentos relativamente mais simples, hoje vivem uma realidade completamente diversa daquela que enfrentavam antes do transplante. “Por mais de vinte anos, fui obrigado a fazer três sessões semanais de hemodiálise. Vi muitas pessoas com quem convivia nos hospitais morrer. Eu só pensava quando seria a minha vez”, diz Sousa, um apaixonado por motocicletas potentes e morador de Brás de Pina, bairro da Zona Norte do Rio. “Até hoje acordo às 4 da manhã nos dias em que fazia o tratamento. Quando percebo que não preciso de mais nada disso, chego a chorar de emoção.” O eletricista Antonio, que se tratava de insuficiência renal em Angra dos Reis, cidade onde mora, se ressentia principalmente dos efeitos do procedimento de diálise, que o deixavam incapacitado para o trabalho. “Depois que fui operado, saí do hospital e já fui trabalhar em minha oficina”, conta. “Tenho uma qualidade de vida que nem imaginava mais ser possível”, diz.
O alemão Stefan Henze encarava a Olimpíada do Rio como um grande momento de sua carreira. Medalhista olímpico nos Jogos de Atenas, em 2004, quando ganhou a prata na canoagem slalom em dupla, ao lado do melhor amigo, Markus Becker, ele estreava como técnico da equipe alemã da modalidade. Em seu currículo carregava ainda o título mundial de 2003 e o europeu de 2008, todos na mesma categoria. Filho do também canoísta Jürgen Henze, que competiu nos Jogos de Munique de 1972, Stefan fazia parte de uma família de atletas. Seu irmão, Frank, quatro anos mais velho, competiu no esporte em Londres, em 2012. Nascido em Halle an der Saale, na Alta-Saxônia, Stefan fez parte da geração que assistiu, ainda criança, ao desmanche da antiga Alemanha Oriental, país pelo qual seu pai competiu. Solteiro, ele vivia com a namorada, Ute Bazle, em Augsburg. Não tinha filhos, mas adorava as duas sobrinhas e a afilhada, Maya, filha do parceiro Markus. Embora sério e compenetrado, era dado a estripulias nos alojamentos durante as competições, como colocar calção molhado no travesseiro de um colega ou grudar chiclete mascado na cama de outro. “Não eram atitudes exatamente louváveis, mas foram momentos muito divertidos”, recordou Becker, em um emocionado discurso lido no funeral do amigo (procurado por VEJA RIO na Alemanha, ele não quis conceder entrevista, assim como a família de Henze).
Na madrugada do acidente, em agosto, o técnico de canoagem voltava de uma noitada no bar Resenha, na Avenida Olegário Maciel, para a Vila dos Atletas, em Jacarepaguá. Estava acompanhado do fisiologista Christian Käding, membro da equipe alemã. Por volta das 4h40, os dois fizeram sinal para o táxi conduzido pelo motorista Artur de Almeida Campos, de 26 anos. Segundo Käding, os dois cochilaram no início do trajeto. Henze estava no banco traseiro. Na Avenida das Américas, o motorista perdeu o controle do veículo e só parou ao bater a lateral direita do carro contra um poste, justamente o lado em que o canoísta estava. Socorridos pelo Corpo de Bombeiros, os alemães foram levados para o Hospital Municipal Lourenço Jorge, na Barra da Tijuca. Käding foi liberado. Seu colega, em estado muito grave, teve de ser transferido para o Hospital Miguel Couto. O taxista, levado ao IML, fez exame de alcoolemia, cujo resultado foi negativo.
Os médicos constataram uma lesão grave no cérebro do canoísta, que estava muito inchado e realizaram, então, uma operação em que a parte superior do crânio foi removida para aliviar a pressão interna da região encefálica. Com o paciente em coma profundo, avaliaram que a chance de recuperação era praticamente inexistente — e esse diagnóstico foi passado para a família, na Alemanha. O pai, Jürgen, a mãe, Katrin, e o irmão, Frank, desembarcaram no Galeão no domingo, 14, já sabendo que se tratava de uma viagem de despedida, pois haviam sido informados de que o atleta sofrera morte cerebral. Chegaram ao Brasil já decididos a doar os órgãos. Na visita que fizeram ao filho na manhã de segunda, Jürgen e Katrin tentavam se controlar e conter a emoção. Frank chorou muito e colocou fotos das filhas sobre o peito do caçula. “Quero que elas fiquem com ele nesse momento”, justificou a uma pessoa que acompanhava a família. O consulado chegou a escalar um intérprete e um médico para esclarecerem eventuais dúvidas, mas a conversa foi rápida. “Eles deram uma lição de dignidade e compaixão. Em momento algum fizeram acusações ou questionaram os procedimentos de doação. Apesar da dor que sentiam, estavam sinceramente interessados em ajudar outras pessoas”, conta a enfermeira responsável pela abordagem à família, Rafaella Thais Souza Carvalho. Feita a remoção, os órgãos foram encaminhados para os futuros receptores. O corpo de Henze foi levado para a Alemanha e cremado. Em um último gesto de solidariedade, a família pediu a parentes e amigos que, em vez de mandarem flores ao funeral, fizessem uma doação a um hospital infantil de Leipzig. Passados quatro meses da tragédia, o processo que investiga o acidente no Rio encontra-se em fase final de investigação e aguarda os laudos periciais do Instituto de Criminalística e as análises das imagens de câmeras do local. A hipótese mais forte é que o taxista tenha adormecido ao volante. Concluída a investigação, ele será indiciado por homicídio culposo e por lesão corporal culposa. Procurado por VEJA RIO, o motorista não atendeu às ligações.
No Rio, entre janeiro e o início de dezembro, foram realizados 520 transplantes de órgãos sólidos, a definição técnica para os procedimentos que envolvem o fígado, o coração e os rins. Em comparação com o mesmo período do ano passado, o volume de cirurgias desse tipo caiu 15% no estado. Atualmente, a fila de espera para essas operações conta com 916 pacientes. É um número que poderia ser bem menor se mais famílias demonstrassem a mesma disposição dos parentes do canoísta alemão. De janeiro a setembro, das 402 abordagens a familiares de pacientes com diagnóstico de morte encefálica, houve apenas 219 (45%) autorizações de doação. “A primeira dificuldade é com o diagnóstico da morte encefálica, é passar essa informação aos familiares. É complicado para eles compreender que aquela pessoa nunca mais voltará à vida funcional. E já nesse momento as decisões devem ser tomadas”, diz Rodrigo Sarlo, nefrologista e coordenador do Programa Estadual de Transplante. Calcula-se que, no Rio, para cada milhão de habitantes, há quinze doadores de órgãos para transplante. Se for levado em conta o cenário de seis anos atrás, quando o índice era de quatro por milhão, trata-se de uma evolução. Entretanto, uma comparação com outros países, como Espanha (35 por milhão) e Estados Unidos (26 por milhão), revela que ainda é um número muito baixo. Para mudar essa realidade, é preciso investimento em campanhas de informação sobre o assunto. Só assim gestos como o que uniu para sempre os Henze a Ivonette, Francisco e Antonio se tornarão mais comuns e beneficiarão cada vez mais pacientes à espera de uma atitude tão simples e, ao mesmo tempo, grandiosa.