Oito andares e instalações luxuosas que por quarenta anos confundiam-se com a crescente paisagem urbana carioca: o Palace Hotel, inaugurado pela família Guinle no início do século XX e mais imponente edifício da antiga Avenida Central, não sobreviveu ao registro da história nacional. Desaparecido na mesma velocidade em que fora concebido na reforma urbana de Pereira Passos, o esquecimento do outrora centro da elite do Rio de Janeiro aponta para a importância da preservação da memória coletiva.
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“Há pouquíssimo volume de informações disponível hoje em dia sobre o Palace Hotel”, afirma o museólogo Gabriel Alonso Monçores, em opinião compartilhada com Daniel Sampaio, fundador do Instituto Rio Antigo. “Do Palace Hotel, temos um punhado de fotografias e informações muito básicas” ressalta Sampaio. “Os prédios da antiga Avenida Central foram, sim, vítimas de projeto de apagamento: vamos esquecer esse passado cheio de ornamentos, eclético, afrancesado, e vamos olhar para uma cidade que quer ser Nova York. Foram decisões políticas, as quais só nos resta ver e refletir.”
A falta de referências contemporâneas ao Palace Hotel é, para o ativista do patrimônio, contraproducente a qualquer tentativa de recuperação da memória. “O Edifício Avenida Central escolheu falar do Hotel Avenida em seu subsolo. Foi no subsolo? Foi, mas ao menos colocaram uma referência. No Marquês do Herval, nem isso”, compara.
Aline Montenegro, doutora em História Social, faz coro ao posicionamento de Sampaio. “O problema do Palace Hotel é que não há nenhuma referência que lembre sua existência. Por exemplo, o Morro do Castelo: foi demolido, mas você tem o nome do lugar como Esplanada do Castelo, acompanhado de alguns remanescentes como a Ladeira da Misericórdia. São essas referências e vestígios que favorecem a memória desse lugar”, declara a pesquisadora. “Um trabalho de construção de referências e divulgação de informação favorece a memória. Sem isso, o que se tem é o esquecimento.”
Point vanguardista, recebeu até obras de Picasso
Há 90 anos, o Palace Hotel recebia uma exposição de Candido Portinari, com obras inéditas de quando voltara da Europa. Na mostra, expunha retratos, paisagens e naturezas mortas ‒ um “índice do aperfeiçoamento do artista”, pinturas de “doçura idílica e quase infantil”, escreveu Múcio Leão no Jornal do Brasil em 20 de agosto de 1932.
Em 1934, o artista retornava ao edifício apresentando, dentre outras obras, a série Paisagens Tropicais, posteriormente adquirida pela Embaixada da Itália sob comando de Roberto Cantalupo. Curiosamente, mais informações são disponíveis nos dias de hoje sobre as exposições de Candido Portinari no Palace Hotel do que sobre o próprio edifício em cerca de quatro décadas de existência.
“A criação artística de Candido Portinari está partilhada pelo mundo em pelo menos 5 mil fragmentos em coleções públicas, privadas e em espaços arquitetônicos. Sua obra está viva, gerando eventos, inserida na cultura ativa, passando de geração em geração”, esclarece Noélia Coutinho, responsável pelo acervo de obras do Projeto Portinari.
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De acordo com ela, o Projeto, fundado em 1979, é um exemplo bem-sucedido de preservação da memória, indo de encontro a um destino que, à época de sua fundação, parecia unir Portinari e o Palace Hotel: o de ilustres desconhecidos. “A destruição de um patrimônio arquitetônico ou artístico fica apenas como uma referência melancólica daquilo que se perdeu”, sumariza.
Destaca-se a importância cultural do Palace Hotel: ponto de encontro entre alta sociedade e a vanguarda modernista, recebe em 1927 uma exposição de Oswaldo Goeldi; em 1928, do lituano Lasar Segall e, em 1929, de Portinari, Ismael Nery e Tarsila do Amaral.
Em 1930, Vicente do Rego Monteiro, organizando a primeira exposição de arte moderna europeia da América do Sul, levou os mestres do Velho Mundo às paredes do Palace Hotel, congregando obras de Fernand Léger, Georges Braque, Raoul Dufy e do próprio Pablo Picasso.
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Do ecletismo ao modernismo ao esquecimento
De acordo com Carlos Fernando Andrade, doutor em Urbanismo pela UFRJ, as obras na Avenida Central durante a reforma Pereira Passos estavam inseridas em um contexto de exacerbação da capitalidade. “É um conceito criado por Giulio Argan, ex-prefeito de Roma, para descrever uma cidade que contém uma série de atributos, inclusive, o de representar a identidade nacional. Nesse sentido, Brasília, por exemplo, é a última capital do século XIX, porque foi feita a partir desse espírito de capitalidade: cria-se uma cidade que vai fortalecer a unidade nacional”, afirma.
Para o ex-superintendente regional do Iphan, vários fatores explicam a perda de interesse na arquitetura da antiga Avenida Central. “Ela foi o esplendor do ecletismo, termo depreciativo para uma mistura de estilos arquitetônicos. E, assim como nos dividimos hoje entre direita e esquerda, na década de 1920 os arquitetos se dividiam entre modernismo e ecletismo, o que tornou-se um problema geracional. Na mesma década, houve também um rompimento na escala da cidade. Entraram em cena o elevador e o concreto armado, iniciando-se a história dos arranha-céus com a construção do edifício A Noite. Soma-se a isso a demolição do Morro do Castelo e o aterro de uma parte da Baía de Guanabara, que aumentou muito a oferta de terrenos”.
“Indiretamente, a falência dos Guinle dialoga com a construção de Brasília”, declara Andrade. “Quando a capital federal é transferida para Brasília, uma série de construções no Rio de Janeiro para de ter sentido. Essa mudança foi fatal para todos que tinham negócios aqui, já que várias fortunas, como a dos Guinle, haviam sido feitas graças a demandas do governo federal”.
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Em 1950, o Palace Hotel era demolido e seus bens, leiloados. Seis anos depois, substituído pelo Edifício Condomínio Marquês do Herval ‒ em projeto do arquiteto Maurício Roberto ‒ e, em 1958, seu vizinho nas imediações e também pertencente à família Guinle, o Teatro Fênix teve o mesmo destino, derrubado para a construção de um novo prédio na hoje Avenida Rio Branco.
Até mesmo o Hotel Avenida, propriedade da Light, grupo econômico que rivalizava com os Guinle por uma série de outras concessões, foi posto abaixo na década de cinquenta: deu origem ao Edifício Avenida Central, primeiro prédio do centro carioca a ser erigido em estrutura metálica.
As demolições não só foram físicas, como também simbólicas. No dia-a-dia do Edifício Condomínio Marquês do Herval, poucas pessoas têm consciência da importância do Palace Hotel na primeira metade do século passado. Estas, uma vez ouvido seu nome, franzem a testa como quem puxa da memória uma lembrança distante.
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“Eu vim para cá tem trinta anos e não tenho condições de dizer o que era o prédio”, diz Ubiratan Guedes, síndico do centro comercial. Perguntado sobre o Palace Hotel, antecessor do prédio do qual hoje administra, Guedes afirma que já ouviu falar.
Já Daniel Louzada, livreiro da Livraria Leonardo Da Vinci, localizada dentro do centro comercial, declara que sabe acerca do Palace Hotel, apesar de conhecê-lo superficialmente. “Essa é a quarta geração de prédios na Avenida Rio Branco, sempre submetida a bota-abaixos. A história do Centro é de poucos prédios preservados”, comenta Louzada.
De acordo com a Secretaria municipal de Planejamento Urbano, a cidade do Rio de Janeiro é, desde 1984, pioneira em políticas de proteção de patrimônio cultural no Brasil. “A Prefeitura protege o imóvel e concede o benefício de isenção de tributos municipais: IPTU, para o proprietário que mantém seu imóvel em bom estado de conservação; e ISS, para as empresas que fazem obras em bens também protegidos pela legislação de patrimônio cultural”, escreve o secretário municipal Augusto Ivan de Freitas Pinheiro.
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Segundo o arquiteto, oficializado na pasta por Eduardo Paes em 4 de agosto, no Rio existem 22 Áreas de Proteção ao Ambiente Cultural (Apacs), 33 Áreas de Entorno de Bens Tombados (AEBT) e 10510 imóveis preservados. O número de bens tombados municipais é de 1728. Já os estaduais são 465 e, os federais, 235.
A preocupação com a área central não começou ano passado, com o plano urbano Reviver Centro. “Numa caminhada por lá hoje, é possível ver diversas ações em benefício do patrimônio. A prefeitura tem recuperado vários elementos históricos da região, bem como o calçamento de pedras portuguesas e as ruas de paralelepípedos. Até o final deste ano, está prevista a recuperação do sistema de iluminação histórica de várias ruas do Centro do Rio, recuperando postes, arandelas, arcos e cordoalhas de iluminação”, sumariza o secretário.
Quanto ao trabalho de resgate da história da cidade e de suas memórias afetivas, são 261 placas de Patrimônio Cultural instaladas nos diversos circuitos por todo o Rio de Janeiro. No Centro, são 75 placas de patrimônio.
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“As placas registram onde moraram pessoas importantes de nossa história, como Tom Jobim, Leila Diniz, Bidu Sayão, Carmem Miranda, Zica e Cartola. Marcam locais onde o carioca celebra a vida e produz cultura, como o Cacique de Ramos, ou cultua a sua religiosidade. E locais onde celebramos o jeito carioca de ser, como os 32 bares que integram o Circuito dos Botequins”.
“O edifício Marquês do Herval por si só tem uma história que o fez merecer uma placa de patrimônio desde 2014. O prédio é um dos principais exemplos da arquitetura moderna na cidade” afirma o secretário municipal.
“Além de sua importância arquitetônica e histórica, o prédio conta com paineis em mosaico de Paulo Werneck, que ficam no hall de elevadores de seu subsolo. O trabalho de Paulo Werneck, muralista representativo da arte moderna brasileira, aparece em projetos de autoria de Oscar Niemeyer, dos irmãos Roberto e de Firmino Saldanha. Eles foram tombados pelo município em 2007, por sua importância cultural.”
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“O IRPH [Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, órgão vinculado à Secretaria Municipal de Planejamento Urbano] irá analisar a ideia de colocação de uma placa alusiva ao Palace Hotel no local”, conclui Augusto Ivan.
*Rodrigo Reichardt, estudante de Jornalismo da PUC-Rio, com orientação de professores da universidade e revisão final de Veja Rio.