A Gávea virou, em plena pandemia, um respiro para os artistas plásticos cariocas. Arborizado e bucólico, não é de hoje que o bairro revela sua vocação para as artes. Tanto que ao longo dos anos se tornou endereço de galerias importantes, como Anita Schwartz e Silvia Cintra, além de abrigar centros culturais como o Instituto Moreira Salles. Mesmo seus shoppings são conhecidos espaços de consumo de pinturas, gravuras e ilustrações. E eis que a vizinhança recebeu uma injeção de ânimo justamente quando o novo coronavírus aportou por estas praias, desencadeando um surpreendente ciclo migratório de artistas e galeristas para a região.
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Uma das explicações está nos imóveis que, uma vez ociosos em decorrência do abalo econômico provocado pelos paralisantes tempos de quarentena, ficaram com preços mais atrativos. Integrante do coletivo Casa Voa, desde janeiro em seu segundo endereço no alto da Rua Marquês de São Vicente, Carolina Kasting dá o tom desse movimento que traz embutida uma bem-vinda interação entre a turma que não para de criar: “A arte é como o ar que a gente respira, ela contamina: eu vejo o que uma pessoa está fazendo e aquilo me chama para outra coisa”, diz.
Dividindo a mesma casa, contornada por natureza abundante, com Antonio Bokel, Clarice Rosadas, Lulo Chaumont, Marcelo Macedo, Mar, Mateu Velasco e Sofia Seda, Carolina discorre com entusiasmo sobre a atmosfera que os envolve. Cada um é dono de seu próprio território, mas eles mantêm uma área de convivência que permite e estimula a tal “contaminação”, que põe fermento em um frenético processo criativo. “Você vê que cada um tem uma linguagem, mas existe uma conversa entre nossos trabalhos”, explica Carolina.
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A conexão artística extrapola a área da casa e de seus moradores, à frente de exposições e cursos (antes presenciais, agora on-line), além de pequenos eventos que aproximam o público da produção ali desenvolvida. “Temos alunos não só do Brasil, mas da Finlândia, de Portugal e até do Benin. A cada cinco pagantes, oferecemos uma bolsa”, diz Bokel, que trouxe suas telas contemporâneas de um estúdio no Rio Comprido. Perto dali, A Produtora hoje reúne sete artistas independentes no endereço da Copacabana Filmes, de Carla Camurati. O primeiro a chegar, há três anos, foi Bob N, pintor e ex-professor do Parque Lage, que reinou absoluto no campo das belas-artes em meio a vizinhos do audiovisual por um bom tempo.
E aí veio a pandemia, sempre ela, diminuindo investimentos na atividade cinematográfica e provocando uma debandada desses profissionais. Abriu-se assim o caminho para novos ocupantes. Primeiro Bob N convidou Bruno Big, expoente da street art, e junto chegou Gabriel Simo, artista gráfico. Depois o fotógrafo Allan Weber trouxe Maxwell Alexandre, que atualmente exibe obras no Palais de Tokyo, em Paris. “Precisamos criar um campo de força e energia”, acredita Bob, acrescentando que não se trata de uma iniciativa coletiva, como a Casa Voa, onde, aliás, já deu aulas. “Eles são uma comunidade, nós dividimos um condomínio, mas uma identidade certamente nos une”, esclarece. A Produtora também promove eventos, como o Rolezinho da Gávea, quando ateliês independentes se põem de portas abertas, como em dezembro passado.
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Fenômenos como os que agora atraem essa turma sensível e movida a criatividade para a Gávea já levaram artistas de diferentes matizes para outros bairros e regiões da cidade. No início dos anos 2000, o Horto acabou se transformando em um polo de cerâmica, moda, joias, fotografia, pintura, design, decoração e, ufa, também de arte contemporânea. Em ruas como Lopes Quintas, Pacheco Leão e Faro formou-se um circuito que se mantém até os dias de hoje. O Centro também escreveu uma parte dessa história. Áreas como a Praça Tiradentes e o Santo Cristo — onde está a antiga fábrica de chocolates Bhering, que já abrigou 52 ateliês e 22 empresas do ramo cultural — entraram para o mapa carioca das artes. No distrito cultural da Gávea, o que impera é a veia contemporânea. E seus novos habitantes se debruçam sobre teoria e prática. “Este é o nosso propósito, ser um centro de produção artística contemporânea e uma casa multidisciplinar”, define René Machado, entusiasmado com a recém-inaugurada Casa Arlette, que compartilha com Ana Quintella, Cathrine Crawfurd, Daniela Granja e Talitha Rossi.
Como outros multifacetados endereços que proliferam pela vizinhança, são promovidos por lá não apenas cursos e palestras, mas também eventos embalados na boa música, cinema, poesia, literatura e outras linguagens artísticas. “O prazer tem de caminhar junto com o trabalho. E o que mais gosto mesmo é possibilitar encontros, algo mais possível agora, com a vacina”, afirma ele, que chega a reunir nessas ocasiões até 100 convidados. Numa delas, o veterano José Bechara ficou muito bem impressionado com a Casa Arlette. Morador da Gávea, ele já tinha ateliês em Santa Teresa e na Bhering, mas começou a alimentar a ideia de ir a pé para o trabalho. “Saí de lá dizendo para o René: se souber de alguma coisa por aí, me fala. E ele descobriu esta casa ao lado, abandonada há dez anos”, relembra Bechara. Os dois logo passaram a dividir o mesmo CEP. Após comprar o imóvel, onde reservou um ateliê no segundo andar para as filhas, o novo vizinho se desdobra entre obras e mudança há três meses. “Identifico aqui um movimento como os que aconteceram em Lisboa, Nova York, em bairros como Chelsea, Village e Tribeca, e também na Lapa”, compara. “A gente não precisa de muito conforto, só de espaço e luz. E a daqui é muito interessante, contaminada pelo volume de verde das matas.”
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Toda essa movimentação também fez Ricardo Kimaid Junior levar a galeria Movimento do Shopping Cassino Atlântico, em Copacabana, onde funcionou por quinze anos, para o Baixo Gávea. O casarão, de 113 anos, estava fechado havia uma década e exigiu uma grande reforma, que chegou ao fim em novembro, após três meses. “Tinha um charme o Cassino, era um cafona legal, mas há uns sete anos estava querendo sair de lá e vir para a rua, para uma casa”, conta Ricardo, que inaugurou a nova sede em dezembro. “Antes eu fechava a porta e ia embora. Hoje eu tenho até um jardineiro. Mesmo assim todo dia venho mais cedo para regar as plantas. Adoro atender a campainha e receber as pessoas.” A mudança também agradou aos vizinhos. O artista gráfico e ilustrador Mateu Velasco, um dos membros da Casa Voa, aquela lá no alto da Marquês de São Vicente, vai expor suas obras no estreante endereço do bairro em fevereiro. “Não tenho mais que carregar tudo para o Posto 6. Não saio da Gávea.” Agora estão todos em casa.
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Haja criatividade
Novos e antigos endereços formam um efervescente circuito na Gávea
1- Instituto Moreira Salles
Antiga residência da família do embaixador e empresário Walther Moreira Salles, a construção de elegantes linhas modernistas valorizadas pelo paisagismo de Burle Marx há mais de vinte anos é um centro cultural.
2- Silvia Cintra
Com mais de trinta anos de serviços prestados à arte contemporânea brasileira, há dez está no prédio da Gávea, construído com formas modernas especialmente para abrigar o acervo e exposições temporárias da galerista.
3- Danielian
Nascida em Copacabana, a galeria desde 2019 ocupa um imponente casarão histórico de três andares. Seu acervo abrange desde a produção do século XIX até os mais recentes nomes da arte contemporânea.
4- Movimento
Agora em novo endereço, a galeria fundada em 2007 é dirigida por Ricardo Kimaid Junior, da terceira geração de uma família de marchands que iniciou sua trajetória nos anos 1930.
5- Casa Voa
O coletivo reúne jovens artistas com asas para criar que, além de desenvolverem seus trabalhos em ateliês vizinhos, compartilham arte em cursos, grupos de estudos e exposições.
6- Casa Arlette
Batizado com o nome da antiga moradora, que viveu ali até os 99 anos, o espaço multidisciplinar comandado pelo artista plástico René Machado é compartilhado por mais cinco artistas contemporâneos.
7- A Produtora
Trata-se de um grupo de sete artistas independentes que em comum têm o endereço, a Copacabana Filmes, da cineasta Carla Camurati.
8- Ateliê de José Bechara
O imóvel está sendo reformado para organizar melhor a produção do artista, que já mora no bairro e vai ficar a um andar de distância do ateliê das filhas.
9- Anita Schwartz
Fundada em 1998, a galeria de arte contemporânea batizada com o nome da marchand foi transferida em 2008 para este espaço, de aproximadamente 700 metros quadrados.