Todos os dias, por volta das 22 horas, o Centro costuma ser tomado por aquele ar de cidade fantasma, quebrado apenas por um ou outro retardatário que teve de trabalhar até mais tarde nos escritórios instalados ali. Nos últimos tempos, entretanto, na corrida contra o relógio para sediar a Olimpíada, a região vê suas ruas desertas ocupadas a cada madrugada por um exército de 1 100 operários. Eles têm como destino as obras do veículo leve sobre trilhos (VLT) e da futura Via Expressa, que ligará a Praça XV à Rodoviária. Nesta semana, realizaram uma operação crucial para as ações que remodelam o bairro mais antigo do Rio.
Trata-se da transposição da rede de gás que corta a Avenida Rio Branco. Ela teve de ser remanejada para que sejam colocados ali os trilhos do VLT. A mudança é feita em etapas, e o primeiro trecho a utilizar o novo duto tem 560 metros, que se estendem até a Praça Mauá desde a Avenida Presidente Vargas. Para a troca, foi necessário interromper o fornecimento de gás do entorno durante toda a madrugada da quarta-feira. A operação é inédita, tendo em vista sua enorme escala. Por isso, consumiu um mês de planejamento. Cerca de sessenta pessoas acompanharam o processo, entre elas funcionários da própria Companhia Estadual de Gás (CEG). “Caso algo desse errado, poderia causar um acidente ou até uma explosão com resultados imprevis��veis”, diz Francisco Neto, encarregado de obras e responsável pelo canteiro depois que o sol se põe. “É preciso, por exemplo, que a regulagem das máquinas esteja perfeita”, diz.
A atividade noturna é considerada fundamental para as mudanças da Rio Branco. Somente após o fim da correria diária é possível operar máquinas pesadas e caminhões que removem o entulho derivado das intervenções. Com duas faixas já interditadas durante o dia, na madrugada são fechados trechos da terceira pista para o trabalho. Em tempos de trânsito infernal e irritação profunda pelas restrições em artérias do Centro, tal alívio é mais que bem-vindo. Mas quem deixa a via rumo à orla entre as Praças XV e Mauá encontra atividade ainda mais frenética durante a noite. Ali, a 50 metros de profundidade, os serviços de perfuração e pavimentação dos túneis da Via Expressa mantêm-se no mesmo ritmo acelerado 24 horas ao dia. Atualmente, o ponto mais adiantado encontra-se próximo ao Armazém Oito, no Porto.
A atividade ininterrupta tem explicação. Para que a via seja concluída até os Jogos, precisam ser superadas dificuldades como a travessia do trecho próximo ao Centro Cultural Banco do Brasil. Ali, o túnel está espremido entre prédios centenários e a Baía de Guanabara. Integrando o frenesi da noite, também está sendo finalizado o Museu do Amanhã. Com 97% das intervenções concluídas, uma chuva de faíscas cai do alto da estrutura projetada por Santiago Calatrava, formando um espetáculo à parte. Empreender obras de magnitude no escuro exige cuidados suplementares. É necessário reforçar a iluminação dos canteiros com uma profusão de holofotes, assim como fazer reuniões de segurança antes de cada jornada. Uma precaução extra, por exemplo, são os equipamentos contra os raios de luz emitidos durante o processo de soldagem. À noite os olhos ficam mais sensíveis ao flash, o que pode causar danos à retina. “Em geral, os trabalhadores do terceiro turno tornam-se especialistas neste horário”, diz Alberto Gomes Silva, presidente da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (Cdurp).
O sacrifício faz sentido, já que resulta ganhos adicionais aos funcionários, que superam os 20%. Quem permanece no Centro após o expediente habitual também acaba testemunhando os problemas que acometem a área, como os assaltos e roubos. O local mais crítico é o entorno da Cinelândia, onde usuários de drogas intimidam pedestres. Recentemente, um grupo que trabalhava na obra do VLT presenciou um episódio violento na frente de uma lanchonete de fast-food. “Somos instruídos a não reagir a nenhuma abordagem de criminosos”, conta Francisco Neto. “Também não respondemos às provocações das pessoas que passam por aqui tarde da noite”, diz. Espera-se que até o ano que vem, quando as obras de revitalização acabarem, não apenas o cenário esteja renovado, mas também que velhas mazelas da região sejam parte do passado. ■