Uma garota que faz uma estranha amizade, um filhote de pato discriminado e uma jovem cozinheira invejada pela vizinhança são os anfitriões da festa de aniversário do Tablado. Referência entre os centros de formação de profissionais de artes cênicas no Rio, o teatro-escola fundado por Maria Clara Machado (1921-2001) completou sessenta anos em outubro. Em uma celebração tardia ? mas bem-vinda ?, o tradicional espaço no Jardim Botânico recebe, a partir do dia 30, um dos maiores clássicos da autora e diretora, A Menina e o Vento. O espetáculo se junta a duas montagens de Maria Clara atualmente em cartaz: O Patinho Feio, baseada no conto do dinamarquês Hans Christian Andersen, no Teatro Miguel Falabella, e Maroquinhas Fru-Fru, no Teatro dos Quatro. Trata-se, portanto, de uma ótima oportunidade para que a criançada se familiarize com a obra de uma autora fundamental da nossa dramaturgia infantil. Seu trabalho atravessa gerações sempre com o mesmo encantamento. “Ela tem um estilo carregado de poesia e metáforas, que são elementos atemporais”, analisa Karen Acioly, autora e diretora de peças voltadas para crianças.
Definitivamente, o Tablado excede em diversos aspectos uma companhia convencional. Mais que uma escola, tornou-se uma seita com fanáticos seguidores. Seus ex-alunos ganharam até uma denominação: são os tabladianos. É difícil pinçar uma novela ou montagem que não tenha no elenco alguém com passagem pela casa. Em Avenida Brasil, por exemplo, Adriana Esteves, Murilo Benício, Marcello Novaes, Isis Valverde, Bianca Comparato e Heloísa Périssé são oriundos de lá. A eles se somam artistas do calibre de Cláudia Abreu, Miguel Falabella, Drica Moraes, Andrea Beltrão, Malu Mader e Wolf Maya, para ficar numa lista bem acanhada. A comemoração de agora leva aos palcos ex-alunos, que dão vida a personagens delineados por Maria Clara. Em A Menina e o Vento, oito dos doze atores se enquadram nesse perfil, além da diretora Cacá Mourthé, sobrinha da fundadora e administradora do Tablado. Apenas duas das treze pessoas que atuam em Maroquinhas Fru-Fru não frequentaram as aulas no Jardim Botânico. “Maria Clara era muito amável, mas sabia cobrar disciplina. Quem se atrasasse três vezes era expulso”, lembra José Lavigne, diretor de TV que está à frente da montagem em cartaz no Shopping da Gávea.
Fundado por um grupo de dezesseis pessoas na casa do pai de Maria Clara, o escritor Aníbal Machado, o Tablado começou como uma companhia amadora. Até hoje se mantém assim. Por determinação do estatuto, não se paga cachê a atores ou diretores em espetáculos montados no palco doméstico. Essa rigorosa doutrina, inclusive, provocou uma dissidência na turma. Em 1958, alguns dos integrantes abandonaram o barco para fundar as próprias trupes, entre eles Cláudio Correa e Castro (1928-2005) e Rubem Correa (1931-1996). Depois do racha, o viés infantil ganhou força na obra de Maria Clara e passou a ditar o repertório da companhia, que enfileirou uma série de atrações elogiadas. O primeiro curso promovido pela casa só seria realizado em meados da década de 60, a pedido de amigas da fundadora, que queriam matricular ali seus filhos. Desde então, o Tablado se transformou numa prestigiada escola de formação de profissionais de artes cênicas, sejam artistas, iluminadores, diretores, sejam cenógrafos. A arrecadação das aulas é o forte das receitas do grupo, que há mais de 55 anos possui sua sede no Jardim Botânico. É lá que fica o teatro com 147 lugares e são ministradas as lições aos 600 alunos matriculados no momento.
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Aliar a paixão típica dos amadores a um trabalho de alta qualidade que só profissionais tarimbados conseguem desenvolver é um dos trunfos da companhia. Maria Clara, por sinal, sempre teve a preocupação de se cercar de nomes destacados em seus mutirões cênicos. A artista plástica Anna Letycia concebeu cenários e figurinos de várias de suas peças, e Carlos Lyra assina a trilha sonora da primeira montagem de Maroquinhas Fru-Fru, exibida em 1961. Ao formar essa cooperativa de talentos, ela alçou o gênero infantil a outro patamar. “Os teatros apresentavam qualquer porcaria para as crianças. Indiretamente, ela forçou os demais a elevar seus padrões”, afirma a crítica Bárbara Heliodora, que teve uma breve passagem como atriz da companhia nos anos 50. Mas não há dúvida: os textos de Maria Clara são a base de todo o arrebatamento. Eles mostram quão cruel é o mundo lá fora, mas sempre com singeleza. E final feliz.