Wilton Marques é um homem de persistência e sorte. Professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em São Paulo, ele encontrou um poema de Machado de Assis que até então nunca havia sido citado, nem mesmo pelos principais especialistas na obra desse escritor carioca, tido por muitos como o maior nome da literatura brasileira. De acordo com pesquisadores como Jean-Michel Massa e Raimundo Magalhães Júnior, o primeiro poema de Machado, publicado no Correio Mercantil em outubro de 1858, chamava-se Esperança. Sabe-se agora, porém, que dois anos antes, aos 17, Machado já havia estreado, no mesmo jornal, com O Grito do Ipiranga.
A descoberta do professor paulista é uma poesia de 76 versos (leia trechos na página ao lado) e poucas rimas. Marques estudava a influência do romantismo na estética machadiana e, ao revirar arquivos da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, no Rio, deparou com a obra, reproduzida na íntegra na edição do Correio de 9 de setembro de 1856, dois dias depois, portanto, da data em que se festeja a Independência do Brasil. E o tema é justamente esse, com um tom geral nacionalista, além de alusões a belezas naturais, como o sol e o mar de nossa costa. “É sempre interessante descobrir algo novo de um autor consagrado”, afirma o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) João Cezar de Castro Rocha, também notório especialista na obra de Machado.
O diálogo com referências históricas é um dos traços já presentes no poema e que apareceria em obras posteriores do escritor. Nos versos juvenis, cita-se o imperador etrusco Tarquínio, e dom Pedro I é comparado a Napoleão Bonaparte. Curiosamente, o autor assinou o poema com o nome inteiro: Joaquim Maria Machado de Assis. O Correio Mercantil era um dos maiores jornais da corte naquele período, e, por isso, a presença de um texto de Machado na publicação demonstra que o autor já tinha alguma intimidade com os principais intelectuais da época.
Além do talento, estar em contato com as pessoas certas deve ter ajudado o escritor quando quis publicar o poema no jornal. “Em 1854, ele começou a trabalhar na livraria de Francisco de Paula Brito, que ficava no Largo do Rossio, atual Praça Tiradentes”, afirma Saulo Neiva, professor da Universidade Blaise-Pascal, em Clermont-Ferrand, na França. Na loja de Paula Brito, aconteciam os encontros da Sociedade Petalógica, nos quais se discutiam os mais diversos temas, entre eles a mentira e a lorota. Perto dali ficava a Tipografia Nacional. Foi transitando na área que Machado conheceu Manuel Antônio de Almeida, por volta de 1856. Almeida, por sua vez, tinha publicado o romance Memórias de um Sargento de Milícias no jornal, e foi justamente ele quem levou Machado para o Correio Mercantil.
Segundo Marques, o autor de romances como O Alienista e Memórias Póstumas de Brás Cubas só passaria a negar a estética romântica a partir do ensaio Passado, Presente e Futuro da Literatura Brasileira, de 1858, ao defender a tese de que “nenhum texto precisa falar de natureza para ser brasileiro”. Wilton Marques e João Cezar de Castro Rocha concordam que O Grito do Ipiranga é um “poema de juventude” e que o valor literário não é a principal atração. O professor da Uerj lembra que a obra poética de Machado ainda hoje é subestimada. “Ocidentais é um dos melhores livros do gênero já escritos no país”, ele afirma.
O Grito do Ipiranga
Liberdade!… Farol divinizado! –
Sob o teu brilho a humanidade e os séculos
Caminham ao porvir. Roma as algemas
Quebrou dos filhos que a opressão lançara
Dentre a sombra de púrpura dos Césares,
Que envolvia Tarquínio em fogo e sangue,
Cheia de tua luz e estimulada
Por teu nome divino – essa palavra
Imensa como as vozes do Oceano.
Sublime como a ideia do infinito!
Tal como Roma a terra americana,
Um dia alevantando ao sol dos trópicos
A fronte que domina os estandartes,
Saudou teu nome majestoso e belo –
E o brado imenso – Independência ou morte! –
Soltado lá das margens do Ipiranga.
Foi nos campos soar da eternidade.
Desenrola nas turbas populares
Dos livres a bandeira o herói tão nobre,
Digno dos louros festivais que outrora
Roma dava aos heróis entre os aplausos
Do povo que os levava ao Capitólio!
Ele foi como o César de Marengo;
Sua voz como a lava do Vesúvio
Levada pela voz da imensidade
Foi do Tejo soar nas margens, onde
Estremeceu de susto o lusitano!
Ipiranga!… Ipiranga!… A voz das brisas
Este nome repete nas florestas!
Caminhante! Eis ali onde primeiro
Soou o brado – Independência ou morte! –
O homem secular levando as águias
Por entre os turbilhões de pó, de fumo,
Ostentando nos livres estandartes
O lúcido farol de um século ovante,
Mais sublime não foi nem mais valente
Que Pedro o herói, da América travando
Do farol da sagrada liberdade,
E acordando o Brasil, escravizado,
Sob férreos grilhões adormecido.
Somos livres! – Nas paginas da história
Nosso nome fulgura – ali traçado
Foi por Deus, que do herói guiando o braço,
Nas folhas o escreveu do eterno livro.
Somos livres! – No peito brasileiro
A ideia da opressão não se acalenta!
Somos já livres como a voz do oceano,
Somos grandes também como o infinito,
Como o nome de Pedro e dos Andradas!
Seja bendito o dia em que Colombo
César dos mares, afrontando as ondas,
À Europa revelou um Novo Mundo;
Ele nos trouxe o cetro das conquistas
Nas mãos de Pedro – o fundador do Império!
O herói calcando os pedestais da história,
Ergue soberbo aos séculos vindouros
A fronte majestosa! Imenso vulto!
É ele o sol da terra brasileira!
Neste dia de esplêndidas lembranças
No peito brasileiro se reflete
O nome dele – como um sol ardente
Brilha dourado no cristal dos prismas!
Tomando o sabre, dominou dois mundos
O herói libertador, valente e ousado!
Ele, o tronco da nossa liberdade,
Foi como o cedro secular do Líbano,
Que resiste ao tufão e às tempestades!
Ipiranga! Inda o vento das florestas
Que as noites tropicais respiram frescas
Parecem murmurar nos seus soluços
O brado imenso – Independência ou morte!
Qual o trovão nos ecos do infinito!
Disse ao guerreiro o Deus da Liberdade:
Liberta o teu Brasil num brado augusto,
E o herói valente libertou num grito!
Poema de autoria de Joaquim Maria Machado de Assis, 7 de setembro de 1856.
Publicado em 9 de setembro de 1856 na página 2 do Correio Mercantil.
Transcrição atualizada ortograficamente por Wilton Marques, professor da UFSCar.