Eram quase 8 e meia da noite na quarta passada (25) quando um estrondo ecoou na Avenida Treze de Maio, em um ponto atrás do Theatro Municipal e bem perto das estações Carioca e Cinelândia do metrô. Em seguida ao barulho, uma imensa nuvem de poeira e fumaça impregnou a área ao redor. À medida que a névoa se dissipava, era possível ter uma noção da dimensão da tragédia que acabara de acontecer. Um prédio de vinte andares havia desabado e, num efeito dominó, derrubado junto com ele um edifício de dez pavimentos e um sobrado vizinhos. As cenas logo após a catástrofe inevitavelmente remetiam ao horror do 11 de Setembro nova-iorquino. Tomadas pelo pânico, as pessoas fugiam empoeiradas dos pés à cabeça, numa imagem lamentavelmente familiar aos olhos do mundo. Elas deixavam para trás uma montanha de escombros com nacos de concreto e ferragens retorcidas que expunham as vísceras da construção. Logo depois o local foi isolado para que as equipes de resgate iniciassem as operações. Até o fechamento desta edição, cinco corpos já tinham sido encontrados e havia mais de vinte desaparecidos.
Se tivesse ocorrido no horário comercial, o desmoronamento teria ceifado vidas humanas em proporções ainda maiores. Nos dias de semana, milhares de pessoas circulam por ali, o coração do Rio de Janeiro. Trata-se de uma cidade dentro da cidade, com pouco mais de 40?000 moradores e uma população flutuante estimada em 2,5 milhões. Pois esse bairro tradicionalmente pulsante estava irreconhecível na última quinta-feira, justamente o dia em que a agitação costuma ser mais intensa por lá. Interditada aos pedestres por medida de segurança, a rua onde aconteceu o desabamento ainda estava coberta de poeira e tomada por veículos do Corpo de Bombeiros, da polícia e da Comlurb, enquanto uma retroescavadeira remexia os escombros. Diversas empresas liberaram seus funcionários, e, sem a movimentação habitual, a alegria pela proximidade do fim de semana deu lugar à desolação. ?Foi um dia em câmera lenta, com muita tristeza e lágrimas?, descreveu o advogado André Luís Martins, que trabalha em um escritório próximo.
O coração carioca bateu mais fraco, mas não foi seu primeiro sinal de fadiga. Naquele pedaço da capital que concentra palacetes e igrejas históricas, imóveis imponentes convivem com edificações malcuidadas, muitas vezes em ruína. Os problemas de conservação e a falta de vistoria podem provocar situações calamitosas. Em outubro do ano passado, uma explosão no depósito de gás levou pelos ares o restaurante Filé Carioca, na Praça Tiradentes, causando a morte de três pessoas e ferimentos em outras dezessete. Três anos antes, pelo mesmo motivo, foi destruído parcialmente um prédio da Rua Regente Feijó, deixando dois mortos e sete feridos. Em setembro de 2002, um edifício de cinco andares desabou na esquina das ruas do Rosário e Primeiro de Março, matando um casal. E existem outras zonas de risco. Um levantamento recente da Secretaria Municipal de Habitação identificou 1?546 endereços do Centro em estado decrépito, totalmente abandonados.
São contrastes de um espaço urbano em que ficam lado a lado o passado e o presente, em que o moderno espigão é vizinho do sobrado centenário. O bairro dos esqueletos urbanos é também o mesmo que abriga três das cinco maiores empresas do Brasil – Petrobras, BR Distribuidora e Vale -, que, juntas, faturam 160 bilhões de dólares por ano. Mas não é só. Há na vizinhança mais de 19?000 companhias, entre micros, pequenas, médias e gigantes da economia nacional, que empregam quase 630?000 pessoas, o equivalente a 27% da força de trabalho do Rio. Mas esse número poderia ser ainda maior. A transferência dos pregões da Bolsa de Valores do Rio para a Bovespa deu início a um processo de esvaziamento do entorno a partir da década de 90. Empresas e bancos de investimentos ali estabelecidos migraram para outros bairros ou para São Paulo. Mesmo escritórios de advocacia, tradicionalmente instalados naquele pedaço devido à proximidade do fórum, resolveram buscar novos ares, caso do Pinheiro Neto, que se mudou para o Humaitá, e do Dannemann Siemsen, agora em Botafogo. ?O dinheiro foi embora do Centro, onde a presença física deixou de ser fundamental?, diz Carlos Bechara, do Pinheiro Neto.
Embalado pelo bom momento da cidade, o jogo começou a virar, pelo menos em parte, de três anos para cá. A descoberta do pré-sal e a escolha para sediar a Olimpíada e a final da Copa do Mundo puxaram uma série de investimentos. Grandes atores da economia voltaram a se instalar nas redondezas, como o grupo EBX, de Eike Batista. No fim do ano passado, ele investiu cerca de 100 milhões de reais para comprar e reformar o antigo Hotel Serrador, a menos de 1 quilômetro do local do desmoronamento. Hoje, cerca de 2?000 funcionários de suas empresas, sediadas anteriormente no Flamengo, trabalham no prédio branco de 23 andares com fachada arredondada. ?A indústria de petróleo e gás está toda aqui ou com planos de vir?, aponta Adriano Pires, consultor do setor imobiliário. ?O Centro fica em uma posição estratégica entre a Bacia de Campos e São Paulo, via Aeroporto Santos Dumont. Além disso, tem boas opções culturais e restaurantes.?
De fato, o bairro financeiro por excelência viu crescer ao longo dos anos sua vocação para o lazer. Concorridos concertos, mostras, peças, balés e óperas integram sua variada agenda artística. Uma profusão de joias arquitetônicas abriga importantes instituições, como o Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), um dos maiores do país, o Museu de Arte Moderna e a Biblioteca Nacional. Além das exposições permanentes com preciosidades de seu acervo de 15?000 peças, o MNBA recebe mostras temporárias de peso. A próxima atração vai reunir 230 criações do pintor e escultor italiano Modigliani, com abertura na quarta (1º). A alguns quarteirões de distância, o Centro Cultural Banco do Brasil é referência em exposições de grande porte. Em cartaz até este domingo (29), exibindo um belo painel do país asiático, Índia será substituída a partir de fevereiro por uma individual de Tarsila do Amaral com oitenta obras da pintora modernista.
No capítulo gastronomia, eis aqui uma concentração democrática de opções. Símbolo máximo da belle époque carioca, a Confeitaria Colombo emociona turistas e nativos com seu estilo art nouveau, espelhos belgas, bancadas de mármore italiano e mobiliário rebuscado. Estabelecimentos simples, como os bares Luiz e Brasil, convivem em harmonia com restaurantes sofisticados, como o Laguiole, ou comandados por chefs de grife. O belga Frédéric De Maeyer fica em frente ao refinado Eça, no subsolo de uma das esquinas mais movimentadas, enquanto o carismático português José Temporão dá as cartas no tradicional Mosteiro. Desde sua abertura, há 48 anos, a casa é a preferida de executivos e políticos em busca de pratos fartos e sem invencionices. Seu salão imponente já recebeu os presidentes João Goulart, Juscelino Kubitschek, Ernesto Geisel e João Figueiredo. ?O governador Carlos Lacerda era um freguês assíduo. Eu mandava entregar os pedidos na casa dele?, lembra Temporão.
Com o Centro como cenário, rei, nobres, imperadores e presidentes protagonizaram episódios que entraram para os livros de história. Foi em uma várzea próxima ao Morro Cara de Cão, no Castelo, que a cidade nasceu, floresceu e se tornou a sede do poder político brasileiro. Não é exagero dizer que nenhum outro local do país acolheu tantos acontecimentos quanto esse ponto nevrálgico da cena nacional, desde o tempo de colônia até a transferência da capital para Brasília, há pouco mais de cinquenta anos. Foi palco do Dia do Fico, em 1822, quando o então príncipe regente, dom Pedro de Alcântara, contrariou as ordens da corte portuguesa, que exigia sua volta a Lisboa, e decidiu ficar no Brasil. Nove anos depois, houve a coroação de seu filho Pedro II. Levada na carruagem até o Paço da Cidade, completamente aterrorizada com a multidão que a cercava com o barulho causado pelos tiros da artilharia, uma assustada criança de 5 anos foi exibida para uma multidão, ao lado das irmãs. A mesma vizinhança testemunhou milhares de cariocas saírem às ruas para comemorar a abolição da escravidão e a proclamação da República. No obelisco da Rio Branco, os gaúchos liderados por Getúlio Vargas amarraram seus cavalos e derrubaram a República Velha. Durante o regime militar, era na mesma avenida que estudantes e intelectuais protestavam contra a censura e a ditadura. Na Cinelândia, em 1984, uma multidão clamava por eleições diretas para presidente da República. ?O bairro tem um papel fundamental na evolução do Rio e do Brasil?, declara o historiador Milton Teixeira.
Ter uma região central com robusta vida cultural e econômica torna-se vital para o desenvolvimento de uma metrópole. Com o Rio de Janeiro vale a mesma regra. É necessário que o cidadão e o poder público unam suas forças e dediquem mais atenção a uma área de potencial inestimável, porém muito mal explorada. Os sinais de abandono estão por toda parte, nos prédios em péssimo estado de conservação, nas ruas apinhadas de mendigos, nas calçadas tomadas por camelôs e na terra de ninguém em que ela se transforma no fim de semana. A melhor maneira de revitalizá-la é por meio de uma ocupação ordenada que encha de vida a região não somente no horário comercial, de segunda a sexta-feira. Um bom exemplo vem de Lisboa. O histórico bairro do Chiado vivia uma decadência acentuada que culminou com um incêndio cujas chamas lamberam grande parte de seu casario. Como a doença de um parente que une a família, o fogaréu foi o estopim de um movimento para recuperar aquele tradicional recanto da capital portuguesa. Foi o que aconteceu, e hoje o Chiado se tornou um concorrido ponto turístico. Podemos seguir tal lição por aqui. Enquanto o carioca chora pelos mortos da tragédia de quarta passada, ele fica na esperança de que o triste episódio signifique também o marco de uma importante virada.