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Psicanalista explica os sonhos estranhos em tempos de pandemia

José Alberto Zusman, psiquiatra e Analista didata da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, conta que despertares interferem nas lembranças deles

Por Carolina Barbosa Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 28 jul 2020, 12h25 - Publicado em 28 jul 2020, 11h46
Sonhos: pandemia e os enredos (Shane/Unsplash/Reprodução)
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Na edição deste mês de julho, VEJA RIO mostra como os sonhos nestes tempos de pandemia revelam que eles vêm carregados de medos e incertezas, especialmente em cidades onde o vírus se espalhou, como o Rio. Não à toa, o tema tornou-se alvo de pesquisas em âmbito regional, nacional e mundo afora. Seja do ponto de vista da neurociência, da psicanálise ou de qualquer especialidade que se debruça a entender os meandros da mente, uma coisa é certa: se, atropelado pela correria do dia a dia, você costumava não reparar neles (e, sim, sempre sonhamos, mesmo que você não se recorde deles), agora, mesmo com jornada tripla em home office, muita gente tem a impressão de sonhar mais ou, se lembrar mais. Por quê? José Alberto Zusman, psiquiatra, doutor em psicanálise pela UFRJ e Analista didata da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), detalha a seguir. 

+Sonhos estranhos na pandemia? Você não é o único

Estamos sonhando mais ou, ao menos, nos lembrando mais dos nossos sonhos? Por que isso vem acontecendo?

Todo sonho é a realização de um desejo ou a elaboração de uma dificuldade. A quarentena parou o nosso mundo. Estamos nos movimentando menos fisicamente. Isso quer dizer que grande parte da produção da nossa mente passou a ganhar mais espaço na vida dos sonhos. Neles, a gente pode estar perto das pessoas, abraçá-las, ignorar isso que internamente a gente não aceita, que é ficar distante das pessoas que amamos. Neste sentido, os sonhos realizam nossos desejos de que nada disso estivesse acontecendo.

Por outro lado, ele também é uma maneira de a gente descarregar, elaborar as angústias que sentimos pela pandemia, porque ela aumentou nosso medo de morrer. Aquilo que era algo muito prosaico, tipo “até amanhã”, se tornou um ponto de interrogação, porque a gente não sabe se amanhã poderemos estar com elas. Então, esse estado de incerteza, de inquietude, de mal-estar para o qual a gente não tem solução faz a gente recorrer muito mais à solução dos sonhos. Muitas vezes temos a impressão de ter tido vários sonhos, quando na verdade frequentemente é um sonho só que a gente lembra por partes. O sonho é uma modalidade diferente da nossa existência que dá continuidade à gente. Há pessoas que vão dormir com um problema e dão a sorte de acordar com a solução.

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O que acontece no nosso organismo enquanto sonhamos?

A gente não para de estar conectado ao que é importante para a gente simplesmente porque vamos dormir. A gente desconecta uma série de partes do nosso funcionamento, porque o nosso corpo precisa do repouso do sono para se reabastecer da sua energia. No entanto, existe uma parte da gente que continua muito ativa, por meio dos sonhos, que acontece justamente quando a gente tem um tipo de sono chamado REM, uma movimentação ocular rápida, que é a parte do sono mais profunda. E tem um porquê disso. Porque quanto mais profundo for o sonho, mais segurança teremos de que isso não acontecerá na realidade. O sonho paralisa a gente. Então podemos sonhar o que quiser, que, quem olha a gente de fora, vê só uma pessoa parada e dormindo. Mas a nossa vida continua muito intensa no sonho. Quanto menos movimento a gente tem da nossa vida de vigília, de estar acordado, mais os sonhos se tornam um recurso de a gente sentir que a nossa vida continua intensa dentro da gente.

Os sonhos elaboram desejos ou angústias e estamos muito angustiados neste momento…

A angústia aumenta e o sonho é uma maneira de tentar equacioná-la. Todos nós sabemos, desde que nascemos, que vamos morrer um dia, mas ninguém está preparado para isso. Para conseguirmos viver, a gente nega isso. A gente se encontra com pessoas, faz combinações, planeja um futuro. E há uma certa negação em cada um desses planejamentos, porque a gente não pode garantir que vai ser assim. Isso, na verdade, é também um sonho, mas um sonho de vigília. A gente sonha acordado, mas quando a gente tá acordado, a gente segue as regras de um funcionamento do organismo acordado, lógico-formal. A regra do sonho é diferente desta: ela é atemporal, funciona de acordo com a realização dos nossos desejos, a gente não tem limitações, porque viver em realidade significa abdicar de uma série de desejos em nome de estar perto dos outros.

O sonho nos permite seguir essa maneira de tentar elaborar a vida dentro de nós e acho que se acentua em período de angústia e imobilidade. De incertezas também. Tudo é assustador. Estamos em uma época de transição: nós saímos de um mundo que funcionava de determinada maneira, ficamos aprisionados em nossas casas e vamos encontrar um mundo que não vai ser o mesmo mundo que a gente deixou na era pré-pandemia. Primeiro porque a configuração dele vai ser outra em muitos aspectos. Por exemplo: ninguém sabe o que vai acontecer com as empresas aéreas e as redes hoteleiras, quem sabe como vão funcionar coisas habituais e cotidianas, como o elevador? Antes perguntávamos: tem lugar para mais um? A gente se espremia e entrava. Vamos encontrar um novo mundo. Primeiro, porque ele vai estar diferente, o cenário vai ser outro, e porque internamente teremos mudado também.

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Muita gente tenta entender o significado dos sonhos. É possível interpretá-los de maneira concreta? Ou seja, eles significam o que, de fato, sugerem?

O sonho não deve ser entendido de forma concreta. Ele tem uma outra lógica. Muitas pessoas se enganam achando que o sonho significa exatamente aquilo que a gente lembra deles, quando na verdade o que a gente lembra dos sonhos a gente já lembra no modo de funcionamento da vigília, que distorce todos os pensamentos deles e os amolda ao pensamento lógico-formal. O que é proibido nas circunstâncias da vigília (tem coisas que a gente não se permite pensar) é liberado no sonho.

A gente tem um sistema de defesa que bloqueia qualquer tipo de pensamento que possa afetar a nossa organização mental, a nossa ética, o que a gente considera insuportável para ser repensado ou vivido. Então, o sonho tem essa liberdade. Ele tem um outro modelo de funcionamento. É atemporal, pode misturar características de duas pessoas representá-las por uma outra figura. Está sempre representando a totalidade da sua vida. O sonho diz muito mais do que a parte concreta que a gente se lembra dele. Em outras palavras, quando a gente organiza o sonho para lembrar dele, ele fica lógico. Significa que já houve uma alteração interna que modificou e encaixou o sonho. É por isso que não é possível traduzi-lo com uma relação de causa e efeito.

O fato de estarmos, em geral, mais ansiosos e despertando mais também interfere no sono e, consequentemente, na lembrança dos sonhos?

O desconhecido gera ansiedade. Logo, o sonho é uma maneira de tentar manter nossa ansiedade sob controle até para que a gente continue dormindo, porque se a gente não diminuir a nossa ansiedade, a gente acorda. O sonho também tem a função de manter o sono, que é importante para o nosso corpo, para recuperar a nossa energia. A grande função do sonho é manter a gente dormindo, porque a gente precisa recarregar as nossas baterias. Se a gente não consegue dormir adequadamente por um tempo prolongado, a gente adoece. Um dos sinais de doença mental é parar de dormir. Não dormir há dias é sinal de perda de saúde. Se estamos muito angustiados, a gente pode não conseguir dormir, o que vai nos deixar mais angustiado ainda, porque no dia seguinte a gente estará com alteração de humor e não vai estar com o mesmo vigor que estaria se tivesse tido uma boa noite de sono.

Se estou dormindo e meu sonho não está sendo capaz de elaborar a minha angústia, eu acordo. E vamos chamar isso de pesadelo, em que a gente acorda para escapar. O sonho é algo muito complexo e é um grande complemento à vida. Se a gente está mais angustiado, a gente pode sonhar mais. Uma última coisa importante em relação a isso, porque quando a gente está mais angustiado e dorme, nossos sonhos ficam mais superficiais porque a gente dorme em estado de alerta e por isso a gente tem mais facilidade de lembrar dos sonhos.

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De que maneira o excesso de tela neste período – muito tempo no celular e no computador – junto à própria falta de sensação de lazer e o isolamento podem interferir nisso tudo?

Tudo isso acontece sem a nossa própria movimentação, estamos presos, em geral. Claro que se trata de uma prisão voluntária e fundamental para que a gente passe por esse momento tempestuoso da pandemia, mas é um tratamento que tem efeitos colaterais. Ele faz mal. Isolamento social é algo tão complexo para nós, porque somos seres gregários, precisamos de convívio, de pessoas, de estabelecer contatos. O pior castigo que nós inventamos na sociedade, quando a pessoa comete um delito, é a prisão. Mas há outro lugar que tem nome curioso: a solitária. A solidão é o nosso maior castigo. As pessoas têm relatado mais sonhos, porque está todo mundo angustiado e a gente tem vivido pior. O problema não é estar sozinho, é isso não ser uma escolha sua. As pessoas estão vivendo pior e isso está sendo representado no sonho. Há determinados paradigmas muito complexos que estão sendo alterados, como o conceito de que quando a gente ama, o melhor é estar perto. De repente, muda a regra do meio do jogo, tendo que ficar longe, para evitar contaminação. O vírus mexeu muito com nosso sistema rotineiro de relação com a vida. Ele causou um grande dano, não só do ponto de vista físico, mas das relações e das leis básicas que regem as relações humanas.

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