Todos os dias, por volta das 8 horas da manhã, uma pequena multidão ocupa a Avenida Delfim Moreira próximo ao Posto 12, no Leblon. Não, não são manifestantes que protestam contra o governador Sérgio Cabral. Trata-se da brigada de babás que infalivelmente toma a faixa de areia em frente à Rua General Venâncio Flores, no chamado Baixo Bebê. Ali, sob o sol cálido, o bate-papo mais parece uma discussão sindical, abordando negociações sobre horários e folgas, direitos trabalhistas e o uso ou não do uniforme branco. Como ninguém é de ferro, sempre há espaço para os últimos fuxicos sobre clubes e restaurantes que elas frequentam com os patrões e, evidentemente, inconfidências sobre a intimidade das famílias para as quais trabalham. O pequeno enclave no Posto 12 reflete uma realidade perceptível em toda a cidade: as mulheres que cuidam dos filhos alheios estão cada vez mais conscientes de seus direitos e de quanto são importantes nos lares onde trabalham. “Elas ocupam um lugar especial, pois são responsáveis pelo que há de mais precioso nas famílias: os filhos”, diz o terapeuta familiar Moisés Groisman. “Isso as coloca em uma condição que nem sempre é agradável ou confortável para os patrões.”
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Quando um casal tem um bebê e precisa contratar uma profissional para cuidar da criança, sem nenhum exagero, está admitindo também um novo membro na família. A imensa maioria das babás dorme no local de trabalho, viaja, frequenta festinhas de aniversário e fica íntima de toda a parentela. É óbvio que tal situação se sustenta sempre sobre um delicado equilíbrio, que pode desandar a qualquer minuto. O elemento explosivo mais recente envolveu a aprovação da emenda constitucional que regulamenta os direitos trabalhistas de empregados domésticos. Pais que sempre dependeram dessa ajuda tiveram de rever o regime de horas das funcionárias e arcar com responsabilidades legais e financeiras extras. Para entender como ambas as partes têm se adaptado às novas circunstâncias, em vigor há três meses, VEJA RIO encomendou ao instituto DataUniCarioca uma pesquisa com 208 babás e 174 patroas que moram na Zona Sul, na Zona Norte, na Barra e no Recreio. O resultado revela de maneira objetiva onde estão os pontos mais difíceis desse relacionamento. Ao contrário do que o senso comum imagina, a grande tensão não se dá no salário. Quase 70% das contratadas se dizem satisfeitas com a remuneração. “Por mais que seja um trabalho, ele carrega fortes componentes afetivos”, observa Jalme Pereira, o coordenador do estudo. “O dinheiro, claro, faz parte dessa equação. Mas o que vai definir a longevidade desse arranjo é a maneira como empregadora e empregada se comportam.”
Uma das grandes dificuldades está justamente em dar ares mais profissionais a uma relação que ? mesmo hoje ? é encarada como pessoal (pelos dois lados, diga-se). Do ponto de vista das patroas, a grande ambição é achar alguém que genuinamente se preocupe com o bem-estar da criança. Se possível, com demonstrações sinceras de afeto e carinho. “As bases para a relação tendem a ser construídas sobre um forte viés maternal e vínculos pessoais muito próximos”, analisa a socióloga britânica Bridget Anderson, da Universidade de Oxford. O levantamento mostra que, para as mães, características como paciência e bom humor são mais importantes do que ter experiência, fazer uma ótima papinha ou cuidar bem das roupas e dos brinquedos dos pequenos. Em nome da harmonia com uma pessoa nesse perfil, muitas vezes, as patroas fazem vista grossa a situações que nem sempre lhes agradam. A atriz Cinthia Monnerat, mãe de Pedro, de 4 anos, adota essa postura pragmática em casa. Assim que o menino nasceu, ela contratou Ana Lucia Silva, a mesma babá que havia cuidado dela e fazia quarenta anos trabalhava para sua família. Como todo mundo sabe, a intimidade em excesso também provoca efeitos colaterais. “Somos tão próximas que ela nem se constrange em dar palpites na educação do Pedro”, reconhece Cinthia. “Mas nada paga a tranquilidade de ter alguém de confiança com meu filho.”
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A receita desanda, e de forma definitiva, quando a recíproca não é verdadeira. Ao mesmo tempo que cobra envolvimento emocional, uma parcela das mães recorre ao profissionalismo para ditar regras rígidas de convivência. Em uma relação formal de trabalho, algumas fazem sentido. Mas, quando a linha pessoal foi cruzada, podem soar exageradas e até desrespeitosas. Entre as empregadoras, 14% dizem restringir o acesso das funcionárias a áreas da casa, 13% admitem que as babás consomem comida diferente da do resto da família, 7% determinam que elas façam suas refeições depois de todos e 4% proíbem o acesso à geladeira. O regime militar não costuma dar muito certo. “No meu antigo emprego não podia comer quase nada, só o básico: arroz e feijão. Carne, só quando sobrava das refeições deles”, recorda Elaine Bueno, de 30 anos, que ficou apenas três meses nesse emprego. Por outro lado, o uso do uniforme branco, tão questionado como elemento de preconceito, parece dividir as empregadas. Entre elas, 16% dizem usar a indumentária contra a vontade. Mas 11% veem na distinção um sinal de status, pois as diferenciaria das domésticas comuns. “Faço questão de mostrar que sou babá. Tenho orgulho da minha profissão, pois afinal estou cuidando do futuro do Brasil”, afirma Andrelita Paulina, de 35 anos, que chegou da Bahia há quinze para desempenhar a função no Rio.
A decisão de contratar alguém para cuidar do bebê é uma das mais difíceis a tomar. Quem é, de fato, essa pessoa? Qual é a sua verdadeira índole? O que ela faz com meu filho quando não estou aqui? Esses são questionamentos que assombram permanentemente os pais, pois as preocupações com a integridade dos pequenos são mais do que justificadas (e a pesquisa desta reportagem mostra isso de maneira incômoda). Ao serem questionadas se haviam cometido alguma violência física, verbal ou psicológica contra uma criança a seus cuidados, 15% das babás responderam afirmativamente. Trata-se de um número elevado, ainda mais quando se leva em consideração que as que disseram “não” podem simplesmente ter mentido. Entre os dados coletados, chama atenção também outro número que revela como nem sempre se conhece o caráter daqueles que moram em nossa casa. Nada menos que 14% das babás entrevistadas reconheceram ter se envolvido em um caso amoroso com o patrão. “Uma delas relatou estar vivendo, no momento da enquete, um affair”, conta Jalme Pereira. Entre as patroas, 13% afirmaram conhecer histórias desse tipo de envolvimento.
“Tensa”, “delicada”, “difícil”, “penosa”. Tais adjetivos apareceram com frequência no estudo quando as entrevistadas procuravam conceituar a relação que desfrutam. Mas nem mesmo as dificuldades desse convívio ou a PEC das Domésticas parecem abalar a interdependência existente hoje. Até as famílias mais pressionadas pelos custos da mudança na legislação, como o peso das horas extras remuneradas, têm realizado adaptações para manter a funcionária. Muitas estão abrindo mão da faxineira e repassando algumas tarefas, a exemplo de lavar, passar, cozinhar e sair com o cachorro, às babás. A mudança no arranjo, porém, vem acompanhada de negociação e alguns mimos. Fazer pequenas concessões tornou-se parte da rotina de quem não quer perder a colaboradora. A atriz Fernanda Pontes, por exemplo, não economiza nos paparicos dispensados a Rejane de Lima, que cuida de sua filha Maria Luisa, de 2 anos. Nas próximas semanas, a funcionária acompanhará mãe e filha em uma viagem à Bahia. “Vou com ela a todos os cantos. Já entrei até no camarim do Fernando e Sorocaba”, orgulha-se a empregada, que venera a dupla sertaneja.
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A forte carga simbólica das mulheres que cuidam dos filhos alheios é um prato cheio para a literatura e o cinema e já rendeu uma infinidade de obras sobre o tema. Uma das mais recentes e bem-sucedidas é o livro The Help, de 2009, escrito pela americana Kathryn Stockett, que foi transformado no filme Histórias Cruzadas, premiado com o Oscar de melhor atriz coadjuvante no ano passado. O roteiro se desenrola em torno de um grupo de babás negras e suas patroas no sul dos Estados Unidos na década de 60. Apesar das tintas carregadas, o filme americano toca em um assunto sensível e bem real: o preconceito racial e de classe. Na pesquisa realizada por VEJA RIO, 12% das entrevistadas revelaram ter sido discriminadas em lugares públicos e 3% na própria casa onde trabalhavam. “Já tive colegas que ouviram na entrevista que não seriam contratadas porque eram negras”, acrescenta Elaine Bueno, a que comia só arroz e feijão. A situação é particularmente delicada em clubes de elite da Zona Sul, entre eles Caiçaras, Jockey e Piraquê. Tais agremiações exigem que as babás estejam sempre uniformizadas em suas dependências, determinação que se tornou alvo de inquérito no Ministério Público. No ano passado, a interpelação, aos berros, de uma babá sem uniforme por um dirigente no clube Paissandu, no Leblon, ganhou ares de escândalo e chegou aos jornais, causando enorme repercussão ? apesar do barulho, a regra continua em vigor, sob o argumento de que ajuda a distinguir as funcionárias de convidados dos sócios.
Alguns especialistas em ciências sociais costumam preconizar que os empregados domésticos são uma disfunção típica de uma sociedade marcada pela desigualdade e que estão fadados a desaparecer na sociedade moderna. Costumam citar como exemplo a dramática mudança que aconteceu na Inglaterra depois da I Guerra Mundial, quando as mulheres deixaram o trabalho nas casas da aristocracia e da classe média alta para se empregar nas indústrias. No Rio, a julgar pelo universo pesquisado, essa previsão parece distante. No entanto, há mães que optaram por abrir mão das babás desde já. A empresária Paula Rezende, mãe de Olívia, de 2 anos, e de José, de 2 meses, andava insatisfeita com o perfil das funcionárias que contratava. Depois de demitir sete delas, adotou jornada de meio período para ficar mais com os filhos. “A gota d?água foi quando a última delas comeu todo o bobó de camarão que a cozinheira tinha feito para o jantar e não deixou nada para o meu marido”, recorda, indignada. Um sinal de que, apesar de toda a boa vontade de lado a lado, patroas e empregadas ainda têm muitas diferenças a superar.