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Rio entra no mapa de fuga dos Venezuelanos que sofrem com a fome

Empurrados pela falta de alimentos e o colapso do governo de Nicolás Maduro, venezuelanos já representam a maioria dos pedidos de refúgio no Rio

Por Sofia Cerqueira
Atualizado em 27 abr 2018, 15h58 - Publicado em 27 abr 2018, 15h58
Família de refugiados
O casal Maria Ponce e José Carrasco com os três filhos: “Perdemos tudo de uma hora
para a outra. Tinha dias em que fazíamos uma única refeição” (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

Aos oito meses de gravidez, Maria Gabriela Moreno Ponce chegou ao Rio, em agosto passado, com 46 quilos (14 a menos em comparação com seu peso normal), junto com o marido e dois filhos. O bebê, ainda no ventre, não pesava mais que 1 quilo e meio, metade do que deveria ter. Naquele instante, toda uma história de vida confortável em Valencia, cidade a duas horas de carro da capital Caracas, se resumia a duas malas. Até 2016, ela, administradora, 30 anos, dona de uma livraria, o marido, José Alejandro Carrasco, 32, ex-funcionário de uma multinacional, e os dois filhos, Jaecmar Alejandra e Angel, viviam em uma ampla casa num condomínio, com dois carros na garagem. Como em várias famílias de classe média, as crianças estudavam em escolas particulares. Com o tempo, ainda que o casal trabalhasse mais, o que recebia era engolido pela inflação. Eles venderam os automóveis, passaram a andar de ônibus e, aos poucos, um deles tinha de ficar em casa, porque o dinheiro nem sequer dava para a passagem. Com medicamentos caríssimos e escassos, caso dos anticoncepcionais, Maria Gabriela engravidou novamente. Para piorar, a situação atingiu um ponto em que os dois só faziam uma refeição diária. Houve vezes em que, durante dois dias, eles tiveram apenas 1 quilo de aipim para dividir. “Enquanto os sírios chegam relatando bombardeios, a primeira coisa que os venezuelanos dizem é que estão passando fome”, diz Aline Thuller, coordenadora do Programa de Atendimento a Refugiados e Solicitantes de Refúgio da Cáritas-RJ, ONG ligada à arquidiocese e apoiada pela Organização das Nações Unidas (ONU).

professor universitário refugiado
Carlos Querecuto era professor universitário, tinha três diplomas e ganhava o equivalente a 100 reais por
mês de salário: “Lá a gente não vive, sobrevive” (Emiliano Capozoli/Veja Rio)

O drama da família de Maria Gabriela é a síntese do perfil dos venezuelanos que fogem para o Rio, empurrados pelo regime ditatorial de Nicolás Maduro e pelo colapso completo em seu país. Eles já representam o maior número de pedidos de refúgio na cidade. No ano passado foram 170 pessoas, nove vezes mais que em 2014. Só em janeiro e fevereiro, a Cáritas registrou 69 novos imigrantes dessa nacionalidade, ou seja, mais de um por dia. Diferentemente dos compatriotas que cruzam a fronteira e se aglomeram em Boa Vista, capital de Roraima, os venezuelanos que chegam aqui ainda têm recursos para atravessar o Brasil de avião. São em geral pessoas de nível superior, profissionais liberais, pequenos empresários e comerciantes. No caso da administradora que estava grávida e desnutrida, antes de deixar sua terra, ela e o marido venderam eletrodomésticos, móveis e a casa, e reuniram o equivalente a 10 000 reais — com a economia mais inflacionada do mundo, que deve chegar a 14 000% em 2018, os preços não têm mais parâmetros. “Nunca imaginei passar por isso. Perdemos tudo de uma hora para a outra”, lamenta Maria Gabriela, com a rechonchuda Fernanda, 6 meses e 6 quilos, no colo. No Rio, encaminhada a um hospital público, ela recebeu suplementos vitamínicos para garantir a vida do bebê. Hoje, os filhos maiores frequentam uma escola municipal e a família, depois de passar alguns meses na casa de uma tia, alugou uma quitinete no Morro do Turano, na Tijuca. “Aqui tem crise, estou com dificuldade para arranjar emprego, mas não se compara ao inferno de lá”, afirma o marido, José Alejandro.

Rota de fuga
(Veja Rio/Veja Rio)
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Não é exagero dizer que a Venezuela vive uma situação de guerra, só que sem ataques a bomba ou conflitos territoriais. Além da desvalorização da moeda — um bolívar é igual a 0,00002 de dólar —, houve recrudescimento da violência. Caracas ostenta o título de cidade mais violenta do mundo. Mata-se por pouco e rouba-se de tudo, de sacolas com alimentos dos pedestres a óleo e pneus de veículos estacionados. Sem exageros, falta tudo no país. As gôndolas dos supermercados estão vazias e os poucos alimentos encontrados têm preços estratosféricos. Açúcar, leite, carne e chocolate — a Venezuela, por ironia, tem uma das melhores produções de cacau do mundo — ficaram inacessíveis. “Chorei de emoção quando entrei num supermercado aqui. Há muito tempo não via prateleiras cheias”, relata o dentista Luis Felipe Pedriquez, 32 anos, que chegou ao Rio há dois meses com a mulher, a também dentista Isis Carolina Parra, 38. Os dois, abrigados no apartamento de uma amiga em São Gonçalo, viviam na capital venezuelana. Com quatro empregos cada um, ganhavam no fim do mês o equivalente a 200 reais. “Ficou impossível viver lá. Fora a escassez de alimentos, não há material para trabalho nem medicamentos”, descreve Isis. Como o casal, o professor universitário Carlos Enrique Ortuño Querecuto, 34 anos, apesar de ter três diplomas (design, educação e licenciatura em artes industriais) e três trabalhos, mal conseguia comer com o salário que recebia — minguados 100 reais. Há mais de um ano também não tinha acesso a seu remédio contra pressão alta. “As pessoas estão cheirando mal nas ruas. Não conseguem achar sabão para lavar as roupas nem pasta de dente, sabonete ou papel higiênico”, narra. Há um mês, o professor, alojado na casa de uma família em Piabetá, bairro de Magé, deixou a Venezuela. “Existe ainda a questão política. Se você se posiciona contra o governo, é perseguido. Tive ex-alunos que foram feridos e mortos em manifestações”, conta.

casal de dentistas venezuelanos
O casal de dentistas Isis Parra e Luis Pedriquez agora mora na casa de
uma amiga em São Gonçalo: “Choramos de emoção ao entrar num mercado daqui” (Emiliano Capozoli/Veja Rio)

Fugir de uma crise de dimensões colossais em busca de uma vida nova a mais de 6 000 quilômetros de distância, definitivamente, não é fácil. Várias companhias deixaram de operar na Venezuela e um voo para o Brasil custa até 4 000 dólares. Desde que o Rio entrou no mapa desse êxodo, os imigrantes enfrentam um périplo semelhante: percorrem três dias em ônibus até a fronteira entre os dois países, cruzam o local a pé e seguem de táxi para o aeroporto de Boa Vista. Três fatores explicam a escolha do destino. “Percebemos que, além do fascínio que o Rio exerce nos estrangeiros, vários venezuelanos já tinham parentes na cidade ou fizeram amizades aqui quando vieram para a Jornada Mundial da Juventude”, enumera Aline, à frente do atendimento a refugiados na Cáritas. Somada à distância, a migração implica vários temores. No trajeto, ainda em seu país, os venezuelanos correm o risco de ter os bens saqueados por ladrões ou confiscados pela Guarda Nacional, como relatam. “Todo o nosso dinheiro (280 dólares) veio escondido dentro de um absorvente”, conta Maria Carolina Juarez Pinto, 39 anos, que deixou um cargo num órgão público, um apartamento de três quartos e toda uma vida para trás. Ela pediu refúgio há quinze dias, acompanhada do marido, o mecânico industrial Jairo Javier Hernandez, 43, e da filha, Aphra, 18. Mesmo trabalhando catorze horas por dia, a família enfrentava a fome e a frustração de não conseguir pagar uma faculdade para a filha. “É difícil assimilar tudo o que está acontecendo. Há algum tempo passávamos fins de semana em resorts e íamos a restaurantes e shoppings. Hoje vivemos de favor”, diz Jairo.

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Carlos-Eduardo-Ramirez_REUTERS – Cópia
(Veja Rio/Veja Rio)

Para entender o cenário catastrófico em que a Venezuela se meteu, é preciso voltar no tempo. O país sempre enfrentou mazelas iguais às de seus vizinhos, como a desigualdade social, mas estava longe de ser o pior. Depois do otimismo no início dos anos 2000 com Hugo Chávez no poder, que prometia alavancar a nação com o que chamava de socialismo do século XXI, o país entrou em uma espiral decrescente com a crise mundial de 2008. Com a queda no preço do barril de petróleo (de 120 dólares, ele chegou a um quinto do valor), que representa mais de 90% de suas exportações, a economia degringolou. A isso se somou a inabilidade financeira e política de seu sucessor, Nicolás Maduro, à frente de um regime ditatorial. “Imagine a crise do Estado do Rio, dependente do petróleo, só que muito mais aguda e em escala nacional”, compara o cientista político Maurício Santoro, professor do Departamento de Relações Internacionais da Uerj. Doenças erradicadas, como a malária e o sarampo, voltaram com tudo. Hoje existem várias empresas expropriadas, a produção é limitada, os artigos importados são caríssimos, há fila para tudo e o salário mínimo está na casa de inacreditáveis 3 dólares. Há limite de saque diário nos bancos, fixado em 10 000 bolívares (57 centavos de real). Para se ter uma ideia, um único ovo custa 22 000 bolívares. Sufocados pela crise, 4 milhões de pessoas abandonaram a Venezuela, das quais 70 000 se encontram rumo à fronteira brasileira. “É o maior fluxo migratório, num curto espaço de tempo, experimentado pelo Brasil”, observa Luiz Fernando Godinho, porta-voz no país do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur).

família de venezuelanos
Com a filha Aphra, Maria Carolina e Jairo Javier juntaram 280 dólares e cruzaram
a fronteira: “Há algum tempo passávamos fins de semana
em resorts. Hoje vivemos de favor” (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)
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Em todo o mundo há 25,3 milhões de pessoas refugiadas ou solicitando a prerrogativa. Desde 1976, quando a Cáritas passou a atuar na área, o Rio recebeu 7 533 imigrantes de mais de sessenta nacionalidades — desde congoleses e sírios até exilados políticos de países vizinhos. Recentemente, São Paulo e Cuiabá, cujas prefeituras firmaram acordos com o governo federal, receberam de uma só vez centenas de venezuelanos. Para o Rio, segundo a Casa Civil da Presidência, não há nada previsto. Mas os venezuelanos que pedem refúgio na Polícia Federal daqui seguem trâmites iguais. Num processo que dura de dois a três anos, podem ser reconhecidos refugiados — provada a perseguição por raça, religião, política e violação dos direitos, entre outros — ou receber permanência humanitária (válida por dois anos, com possibilidade de renovação). Em poucas semanas, porém, tiram CPF e carteira de trabalho. “Não é fácil recomeçar quando, a essa altura da vida, já se imaginava estar usufruindo tudo o que se conquistou. Tem de ser forte”, diz Maria Elias El Warrak, 52 anos, com os olhos cheios d’água. Ela, que tinha uma loja de informática e um imóvel de 200 metros quadrados com piscina, o marido, o engenheiro José Alvarado, 49, e os dois filhos, de 9 e 19, chegaram na primeira leva significativa de venezuelanos, em 2015. Hoje a família divide um minúsculo apartamento na Tijuca com três parentes também fugidos da crise e vive da venda de iguarias libanesas em feiras. Como ela, o professor Carlos Enrique Querecuto, recém-chegado, sonha em trazer outros familiares da Venezuela. “Lá a gente não vive, sobrevive”, diz. O Rio, por mais castigado que esteja, ainda desperta esperança.

Aline Thuller. representante da Cáritas
Rio de Janeiro, 19/04/2018: Refugiados Venezuela: Aline Thuller (Cáritas). (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)
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