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No astral do Rivotril

Indicado para tratar síndrome do pânico e fobias, o medicamento de tarja preta é adotado por cariocas como panaceia para as tensões do dia a dia

Por Sofia Cerqueira
Atualizado em 5 jun 2017, 13h47 - Publicado em 2 out 2013, 17h09
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  • Em meio à cacofonia de mensagens em que se transformou o Facebook durante os protestos que agitaram a cidade em julho, a ex-modelo Márcia Couto conseguiu se destacar em seu grupo de amigos. Durante uma noite particularmente conturbada por bombas de efeito moral, quebra-quebra e sirenes ligadas no bairro onde mora, o Leblon, ela saiu da cantilena político-indignada dos conhecidos que estavam on-line e tascou: “Gente, preciso de um Rivotril”. Imediatamente, sua intervenção foi acolhida por uma enxurrada de comentários como “Eu também, eu também, vou tomar um, dois, três…”. Embora quase todas as menções fossem em tom de galhofa, o episódio é uma pequena amostra de como esse medicamento criado há quatro décadas para tratar a epilepsia se tornou popular entre os cariocas. De acordo com dados de mercado, trata-se do calmante mais consumido no Rio, à frente de drogas para impotência sexual e hipertensão. Transformado em uma espécie de panaceia para as mais variadas aflições, é usado para dissipar o nervosismo em entrevistas de emprego, estancar a inquietação ante uma festa, aplacar a frustração de um rompimento amoroso ou eliminar o tormento da insônia. Márcia, por exemplo, sempre carrega uma cartela na bolsa para o caso de aparecer “uma tensão” no dia a dia. Nem mesmo a tarja preta na embalagem, sinal de que ali dentro existe uma substância que demanda cuidados especiais, arrefece o ânimo dos usuários. “Para muita gente funciona como se fosse o velho copinho de água com açúcar, o que evidentemente é um exagero”, compara a médica Fátima Vasconcellos, presidente da Associação Psiquiátrica do Estado e chefe de clínica do Serviço de Psiquiatra da Santa Casa.

    Felipe Fittipaldi
    Felipe Fittipaldi ()

    Chamado de “pílula da felicidade”, “comprimido do relax” ou “gotinha da paz” em sua versão líquida, o Rivotril desfruta uma aura pop incomum para um medicamento. A fama é tanta que há uma série de piadas de gosto duvidoso em torno do produto ? entre elas “Eu rivo sim, eu tô rivendo, tem gente que não rive e está morrendo” e “Rivotril, Rivotril meu, existe alguém mais calma do que eu?”. Apenas na internet, há mais de oitenta páginas espalhadas pelas redes sociais fazendo alusão ao uso do remédio ou estampando o seu nome. Boa parte dessa popularidade vem dos efeitos do Rivotril, que desacelera o sistema nervoso central, nocauteando um grupo de neurotransmissores e reduzindo as respostas aos estímulos externos. Como resultado, induz a um relaxamento muscular, a uma sensação de tranquilidade, chegando à sedação leve, no caso de doses mais altas. Quem toma explica que o efeito é parecido com o do consumo de uma ou duas doses de álcool, mas mantendo a clareza dos pensamentos e uma impressão de calma e paz. Com tais atributos, transformou-se em um ícone dos balcões de farmácia e uma espécie de senha entre iniciados para se referir a situações-limite de stress e ansiedade. “Outro dia, antes de começar um debate no programa Na Moral, uma autoridade soltou sem cerimônia, fora do ar: ?Só com Rivotril para aguentar?”, recorda o jornalista e apresentador Pedro Bial. Ele não entrega o nome do entrevistado, mas não vê problemas em contar que tomou o comprimido por sete anos. “Usava sempre para dormir e, durante o dia, nos momentos mais críticos.”

    Felipe Fittipaldi
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    Tamanha popularidade não deixa de ser um paradoxo, principalmente por se tratar de uma droga de venda controlada, daquelas que requerem receituário especial com registro do nome do consumidor. Por exigência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), medicamentos dessa categoria não podem ter sua imagem veiculada nem ser alvo de promoções voltadas para o público leigo. Dois fatores, no entanto, explicam a penetração do Rivotril. O primeiro é o custo. Considerado uma droga antiga, ele tem preço imbatível: com 5 reais compra-se a tranquilidade artificial em uma caixa de trinta comprimidos. Outro motivo que ajuda a explicar o sucesso do remédio é a forma indiscriminada de sua prescrição. Tornou-se comum o paciente chegar a um consultório com gastrite, enxaqueca, tensão menstrual, pressão alta, bruxismo ou qualquer outra queixa que tenha a mais leve relação com ansiedade e sair de lá com uma receita. Até dentistas o recomendam. Isso quando a indicação não vem de um parente ou colega de trabalho, conseguindo-se depois a autori­zação oficial com um médico amigo. “Acontece também de uma pessoa chegar com uma queixa, no meio de uma consulta, e dizer que outro profissional indicou o Rivotril. É uma maneira de sugerir que você também o faça”, relata Marco Oliveira Py, presidente da Associação de Neurologia do Estado do Rio.

    Tomás Rangel
    Tomás Rangel ()

    É inegável que uma droga tão bem-sucedida traz benefícios às pessoas que a consomem. A questão central, evidentemente, não é o remédio. O problema aparece quando, sem o monitoramento adequado, ele se transforma em muleta diante da mais prosaica das adversidades. Assim como outros vícios, no início tudo fica uma maravilha. Só se veem a parte boa e os prazeres que o medicamento proporciona. Mas especialistas (e mesmo sua bula) afirmam que o Rivotril tem potencial para causar dependência depois de três meses de uso contínuo. Em comparação com outros tranquilizantes, seus efeitos colaterais são considerados menores, mas existem e precisam ser levados a sério. Ele pode dar sonolência, reduzir a concentração e até causar danos à memória. Uma crise de abstinência, por exemplo, pode virar um pesadelo. Algumas pessoas chegam a ser internadas para que o processo de interrupção do uso seja feito de forma gradativa. É comum que, no tratamento, a ansiedade se torne insuportável e venha associada a tremores, sudorese, taquicardia e mesmo convulsões. É uma experiência que a estudante de psicologia Maria Leal Velloso, de 32 anos, quer esquecer. “De uma ho­ra para outra fiquei fora de mim”, conta ela, que interrompeu abruptamente a ingestão do medicamento. “As pessoas não se dão conta, mas ele pode viciar da mesma forma que o álcool e as drogas ilícitas”, afirma a psiquiatra Analice Gigliotti, chefe do departamento de dependentes químicos da Santa Casa.

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    Felipe Fittipaldi
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    Assim como outras drogas que surgiram para combater um determinado mal, o Rivotril ao longo dos anos passou a ter várias utilidades. Lançado no mercado nacional em 1973 como anticonvulsivante, o produto, da classe dos benzodiazepínicos, foi alçado à condição de tranquilizante pelos inúmeros benefícios que apresentava em relação a outros medicamentos anteriormente usados para esse fim, os barbitúricos. Deveria ser indicado, sobretudo, para transtornos como síndrome do pânico e fobias em geral. Seu público-alvo, po­rém, é muito mais extenso. Com o ritmo de vida acelerado e a contínua exposição a pressões (sejam pessoais, sejam profissionais), um em cada três moradores de regiões metropolitanas apresenta distúrbios decorrentes da ansiedade. Os problemas com o sono também são muito frequentes: estima-se que atinjam de 15% a 27% da população adulta. Não à toa, suas vendas, somadas às das versões genéricas comercializadas sob o nome de Clonazepam, crescem ao ritmo de 15% ao ano. “Prescrito de forma correta e por um tempo adequado, o remédio é muito seguro e eficaz”, defende o psiquiatra Antonio Egidio Nardi, professor titular da Faculdade de Medicina da UFRJ e uma das maiores autoridades em transtornos de ansiedade no país. “Mas não dá para usar um medicamento como válvula de escape e compensação aos dissabores do cotidiano”, completa.

    Felipe Fittipaldi
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    Ao contrário de produtos destinados ao tratamento de disfunção erétil, calvície ou acne, o Rivotril não se enquadra naquilo que os americanos chamam de lifestyle drug, ou “droga de estilo de vida”. Está longe de ser de uso recreativo e implica um diagnóstico criterioso e sérios cuidados em sua administração. Como os médicos conscientes reforçam, o Rivotril de forma alguma deve ser visto como um paliativo para tensões cotidianas banais, como ir a um evento social ou falar em público. Nesse sentido, usar esse medicamento como pílulas ou gotinhas inócuas não é apenas um caso grave de ingenuidade. Trata-se da mais pura irresponsabilidade.

    Felipe Fittipaldi
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