No início do século XX, o cronista João do Rio registrou uma cidade em plena transformação. A profunda e à época polêmica reforma capitaneada pelo prefeito Pereira Passos não alterava apenas a geografia, mas também trazia à população um novo modo de se relacionar com os espaços públicos, que passou a percorrer a partir de então vias mais largas — uma inspiração que veio da Paris idealizada pelo Barão Haussmann. Hoje, quem flana como o escritor pelo Centro sente mais ventos de mudança, diferentes daqueles, claro, mas com potência para alterar o cenário. O movimento, que vinha arrefecendo por uma combinação de desordem urbana com solavancos econômicos, está aos poucos retomando o vigor, fenômeno que se pronuncia na coleção de canteiros de obras. Uma marca destes tempos é que boa parte dos empreendimentos tem a moradia como finalidade, rompendo com uma tradição majoritariamente comercial dessa zona da cidade. “Em um ano, o número de pedidos de licença para edifícios residenciais superou todos os registrados na última década”, confirma a arquiteta e urbanista Thaís Garlet Biagini, gerente de planejamento do Centro, da prefeitura.
O atual aquecimento imobiliário do bairro, que resiste às turbulências econômicas, tem um leque de explicações. Um de seus motores passa pelas facilidades promovidas pelo Reviver Centro, programa municipal lançado em julho de 2021 na tentativa de reverter o flagrante abandono da área. O conjunto de medidas trouxe incentivos fiscais, como a suspensão de dívida ativa e a isenção de IPTU para novos empreendimentos na área, onde até o fim da década de 90 não era permitida a construção de unidades para moradia. “As antigas legislações acabaram coibindo uma vida urbana dentro desse eixo comercial. O Centro, porém, tem uma vocação residencial muito forte graças a toda infraestrutura que já está ali, em forma de serviços e aparelhos culturais”, explica Leonardo Mesquita, vice-presidente comercial da Cury, responsável pelo primeiro residencial que se ergue em sete décadas na Avenida Presidente Vargas, exatamente em frente à estação do metrô. E o empreendimento foi bem recebido: quase 60% dos 360 apartamentos na planta foram arrematados.
Os números do Centro ajudam a dar uma dimensão da euforia imobiliária naquelas imediações. São mais de 2 000 unidades ali previstas para construção ou retrofit, das quais mais da metade já foi licenciada (veja no quadro). Inicialmente, a Secretaria de Planejamento Urbano tinha como objetivo um avanço de 15% nos lançamentos residenciais até 2024, mas a meta será muito em breve superada: em agosto, o aumento já era de 13,24%. Somando a Zona Portuária à equação, adicionam-se mais 4 300 apartamentos distribuídos pelos quatro empreendimentos atualmente em obras — o maior deles foi lançado no mês passado com 10% das unidades amealhadas na pré-venda. O esperado é que haja um crescimento populacional na área nos próximos anos, instaurando-se um desejável ciclo virtuoso. “Estou ansiosa para ver a nova vida que vai despontar por lá daqui a pouco tempo”, diz a sargento da Aeronáutica Amanda Correia, 26 anos, que acaba de comprar na vizinhança seu primeiro imóvel, juntando-se aos mais de 40 000 moradores do Centro e da Lapa, listados no último Censo disponível, de 2010.
O entusiasmo em relação ao próximo capítulo que se vislumbra nesse naco da cidade convive com gargalos típicos das regiões centrais, como o esvaziamento econômico, a degradação da infraestrutura e a falta de segurança. Tais problemas estão justamente na mira da Aliança Centro-Rio, associação de empresas imobiliárias e investidores que busca dar cara nova à região, aprendendo com bem-sucedidas iniciativas de outras capitais — caso, por exemplo, da Cidade do Cabo, na África do Sul, onde ONGs ajudam na capacitação de pessoas em situação de rua para o trabalho em prol dos próprios espaços urbanos. “Queremos transformar o Centro na primeira Área de Revitalização Econômica (ARE) da América Latina, com os proprietários de empreendimentos trabalhando lado a lado em ações de zeladoria, segurança e limpeza, além das já prestadas pelos órgãos públicos”, resume Marcelo Haddad, CEO da associação que representa mais de cinquenta prédios nesse perímetro.
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O Centro vem sofrendo em sua história recente. “Em 1996, quando as empresas começaram a se espalhar pela cidade e muitas migraram para São Paulo, vimos as ruas esvaziarem”, lembra Claudio André Castro, diretor da Sergio Castro Imóveis, especializada em grandes terrenos e prédios. Segundo ele, o boom do petróleo e ações urbanísticas nos mandatos de Cesar Maia e Eduardo Paes (que trouxe a baixo o Elevado da Perimetral, por exemplo) foram remodelando e repovoando a região. Agora, o afluxo de moradores pode, mais uma vez, revigorar a área. “Vendemos um espaço de quase um quarteirão ao lado da Praça XV para virar um residencial e temos pelo menos mais quinze outros com possibilidade de seguir o mesmo caminho”, completa Castro, que confidencia ter sido procurado por três grandes escolas para abrir unidades no Centro. Se as ruas são “entes vivos, pensam, têm ideias”, como escreveu João do Rio, elas dão todos os sinais de estar se preparando para contar uma nova história.