Ocenário é mesmo “uma beleza”, como diz a composição de 1956, escrita por Enéas Brites e Aloísio da Costa. Mas, ao longo das últimas décadas, tudo o que poderia haver de bonito no Morro da Mangueira foi esmaecendo diante do poder do tráfico. A partir dos anos 80 a favela viu-se dominada por bandidos, e sua escola de samba, a mais popular do Brasil, viveu uma relação perigosa com o crime. Um episódio emblemático ocorreu em 2008, quando a polícia descobriu passagens secretas que ligavam bocas de fumo à quadra da Verde e Rosa, orgulhosamente chamada de Palácio do Samba. O domingo passado, 19 de junho de 2011, pode ter sido o marco de uma mudança radical na história dessa autodenominada nação de 30?000 habitantes/torcedores. Numa operação tranquila, 750 agentes ocuparam o complexo, no primeiro passo para a instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) no local.
A retomada do morro pelo estado é uma boa notícia para todas as pessoas de bem. Para um grupo, em especial, simboliza a abertura de uma nova perspectiva profissional. Trata-se da geração de bambas mangueirenses que cresceu sob a dominação do tráfico e agora pode, enfim, batucar e cantar sem precisar se preocupar com essa presença nefasta. “Eu não podia chamar gente de Vila Isabel para os meus shows aqui porque o Morro dos Macacos era de uma facção inimiga”, conta Ubiranei Oliveira, integrante do grupo de pagode Art Júnior. “Isso acaba de virar coisa do passado”, festeja ele, que é neto de Padeirinho (1927-1987), um dos baluartes da agremiação e autor de obras destacadas, como Favela e O Grande Presidente, samba-enredo de exaltação a Getúlio Vargas. Seu conjunto, cujo vocalista é Alex Lima ? também prata da casa ?, toca obras de Padeirinho, de Cartola e de Carlos Cachaça, artistas fenomenais da Estação Primeira.
Aos 26 anos, Ubiranei personifica a chamada nova guarda da Mangueira. Ela reúne gente como o estudante de engenharia e músico profissional Vitor Esteves, 25 anos, que se apresenta em bares com seu violão e voz embargada, inspirado no ídolo Nelson Cavaquinho. “Ele foi maior do que Cartola”, provoca, ciente da polêmica. Tal qual seu mestre, ele explora em suas composições a temática melancólica, expressa, por exemplo, nos versos de As Pessoas Mudam (“o ser humano perdeu o seu valor / ninguém preza a felicidade e o amor”). Ao finalizar a letra, ele conta que chorou muito.
Fora os eventuais arroubos de tristeza, são mesmo o prazer, a alegria e a festa que movem a rapaziada. Vadinho Freire, 24 anos, é tão animado e tem gogó tão firme que, em fevereiro, foi chamado para integrar o time oficial dos puxadores da escola. Nascido em uma favela de Niterói, ele recentemente fez as malas e se mudou para a Mangueira. Diz que deu sorte, que pegou um bom momento: “Estou feliz, ainda mais agora, com a pacificação”.
Depois de um período difícil, em que as notícias que relacionavam a agremiação com os criminosos resultaram no êxodo maciço dos patrocinadores, os mangueirenses conseguem vislumbrar um futuro melhor. “Daqui para a frente nossos ensaios voltarão a lotar”, aposta o presidente Ivo Meirelles. “A palavra de ordem é esperança.” Ele acaba de fechar parceria com uma empresa de marketing, com o objetivo de profissionalizar ainda mais o Carnaval, incrementar o calendário de eventos e atrair apoiadores. Uma das ideias em estudo é transformar a disputa de samba-enredo para o desfile de 2012, cujo tema é o bloco Cacique de Ramos, numa espécie de festival da canção. Pela primeira vez serão vendidos ingressos pela internet nos ensaios eliminatórios, realizados nas noites de sábado. O objetivo é começar a encher o Palácio do Samba, onde cabem 8?000 foliões, não só na hora da decisão do samba-enredo ou na reta final do Carnaval, mas já a partir de julho, no início das apresentações.
Na última finalíssima realizada naquela quadra, em outubro do ano passado, um dos talentos mais promissores da Mangueira, o músico Danilo Negreiros, 24 anos, nascido e criado no morro, estava no Palácio do Samba torcendo fervorosamente pelo cantor Edimar Guiã, seu parceiro em shows na noite carioca. Para sua alegria, o tema do amigo foi o vencedor e ajudou a dar, no último desfile, o terceiro lugar à Verde e Rosa, que não vence o Carnaval desde 2002. Bastante popular na região, Danilinho toca cavaco e, como compositor, busca inspiração num mangueirense não exatamente nativo do lugar: Chico Buarque, que, por sinal, foi o enredo com o qual a escola se sagrou campeã em 1998. “Ele vai fundo nas letras”, justifica. “Numa época, o Chico até vinha à quadra, mas anda meio sumido”, lamenta Dany Dany ? sambista que se preza sempre tem no mínimo um apelido. Quem sabe a presença dos policiais e a chegada da UPP sirvam de senha para que voltem ao morro todos os que gostam de samba. E de paz.