O cenário era uma viela como tantas outras na Lapa, com a silhueta iluminada dos arcos ao fundo. De repente, um fumacê tomou o espaço e, de dentro da neblina, surgiram três personagens bizarros. Com cabeça pontuda, estavam vestidos com pesadas armaduras. “Terráqueos, estamos aqui para invadir a Terra”, bradou um deles. “Nós viemos acabar com a banda Calypso e o Wesley Safadão”, continuou. Em seguida, a voz agressiva mudou de tom: “Gente, essa fantasia não está legal aqui na minha virilha, não”. Foi o suficiente para que uma gargalhada generalizada eclodisse entre os 25 técnicos e produtores da equipe de filmagem em um estúdio de 170 metros quadrados na Zona Portuária. No espaço, onde foi erguido um quarteirão cenográfico dotado de bar com mesas na calçada, galeria de arte e até loja de discos de vinil, o cuidado com os detalhes deixava claro que, apesar da piada, a produção não tinha nada de mambembe.
O dono da voz, o humorista Rafael Portugal, faz parte do grupo Porta dos Fundos, um dos maiores fenômenos da internet brasileira, cujo canal tem 13,4 milhões de seguidores. Três dias antes, em um estúdio vizinho, a banda brasiliense Scalene havia gravado um clipe com sofisticadas câmeras de cinema 4K. As duas filmagens foram o pontapé de lançamento do YouTube Space no Rio, um complexo voltado à realização de vídeos para a internet instalado no Armazém 1, junto à Praça Mauá. Em uma área de 3 000 metros quadrados, funcionarão três estúdios, duas salas de aula e ilhas de edição, tudo recheado de equipamentos moderníssimos. “Queremos estimular a produção e aumentar a qualidade dos vídeos para a internet. Não deixamos nada a desejar ao Projac, nem a Hollywood. Dá até para gravar novelas e filmes aqui”, explica Livia Marquez, diretora do local. O YouTube e sua empresa-mãe, o Google, mantêm sob sigilo absoluto o valor do investimento na estrutura, que deverá atrair produtores de conteúdo audiovisual para a web de todo o Brasil.
Com um projeto que remonta aos tempos da bonança pré-olímpica, o YouTube Space carioca abre as portas em um momento bem distinto daqueles anos de euforia. Se em 2015, quando o projeto foi anunciado com pompa pelo então prefeito Eduardo Paes, a cidade estava em ebulição em meio a obras e inaugurações, hoje o cenário é bem diverso. No entanto, entre a avalanche de indicadores pouco auspiciosos, a robustez dos números envolvidos no universo do vídeo digital surpreende. Na mesma segunda-feira (31) em que o Porta dos Fundos gravava seu esquete no complexo de estúdios, o youtuber Felipe Neto, um dos campeões brasileiros de audiência no ramo, cravou um recorde espantoso ao amealhar em apenas um dia 1 milhão de seguidores no canal Irmãos Neto, tocado em parceria com o irmão Luccas, famoso por ter mergulhado — e se filmado — em uma banheira cheia de Nutella. Dois dias antes, o vídeo de Anitta com a drag queen Pablo Vittar em que cantam a música Sua Cara bateu um recorde mundial ao acumular 17 milhões de visualizações nas primeiras 24 horas de exibição.
Nona unidade de YouTube Space inaugurada no mundo, a versão carioca é a maior fora dos Estados Unidos e só perde em tamanho para a de Los Angeles (a de São Paulo, de 2015, tem um décimo do tamanho). A ambição do projeto é justificada pela relevância do Rio para a indústria audiovisual. Além de ser a sede da maior emissora de TV brasileira e concentrar milhares de prestadores de serviços ligados ao setor, a capital fluminense é a base de três dos dez youtubers mais seguidos do país — Felipe Neto, Porta dos Fundos e Parafernalha. “Faço sucesso há sete anos porque estudo tendências de mercado e comportamento desde sempre. Muita gente acha que para ser youtuber é só entrar no site e começar a ganhar dinheiro. Se a pessoa não encarar o seu canal como uma empresa, nada acontecerá”, diz Felipe Neto, cujo canal homônimo tem mais de 12 milhões de seguidores.
Criado há doze anos nos Estados Unidos como uma base de compartilhamento de vídeos banais que exibiam de bebês e bichos fofinhos a compilados de videocassetadas, o YouTube tornou-se um colosso global ao ser comprado pelo Google por 1,65 bilhão de dólares um ano depois de sua fundação (seu valor de mercado hoje ultrapassa 100 bilhões de dólares). Transformado em plataforma de exibição de registros de todo tipo, com tentáculos em 88 países e uma audiência que assiste a mais de 1 bilhão de horas de vídeos diariamente, o site passa por um processo de readequação de seu conteúdo. O raciocínio é simples: vídeos de qualidade atraem mais parceiros comerciais — e (muito) dinheiro. Ao valorizar os aspectos técnicos das produções, o site aproxima-se da linguagem da televisão. E, nessa estratégia, o YouTube Space tem um papel: mostrar à meninada como fazer vídeos melhores.
No galpão do porto do Rio, por exemplo, haverá aulas e workshops gratuitos para ensinar a estruturar a forma e o conteúdo dos filmes, a desenvolver habilidades técnicas, gerenciar as redes sociais, pensar a construção da própria marca e criar engajamento com os fãs. Há ainda cursos ligados à realidade virtual, além de módulos que explicam como lidar com a superexposição e o bullying. Para isso, conta-se com um time fixo de quatro professores e com palestrantes convidados. “Os eventos sociais como happy hours e festas promovidas no espaço são outro ponto alto, pois ajudam a fomentar o networking”, afirma Otávio Albuquerque, um dos gerentes do local e também estrela dos canais Rolê Gourmet e Coisas que Nunca Vivi.
O esforço do Google para alavancar o YouTube no país, o segundo maior mercado da marca, é parte de uma arrojada estratégia comercial. De acordo com a consultoria ComScore, 98 milhões de brasileiros estão conectados com o YouTube, um volume que cresceu 54% nos últimos dois anos. A maioria (96%) é de jovens de 18 a 35 anos das classes A, B e C. Nos Estados Unidos, o site já é maior do que a TV a cabo para a faixa etária de 18 a 49 anos. Graças à popularização das smart TVs, em que se navega na internet no próprio televisor, o tempo de visualização de vídeos on-line cresce 90% por ano. Detalhe: quem assiste a conteúdos de moda, beleza e games é mais propenso a gastar dinheiro com compras, um dado que faz brilhar os olhos dos anunciantes. “Uma grande vantagem do mundo digital é a segmentação. Na internet, a marca pode escolher exatamente com qual nicho quer falar, enquanto na TV, por exemplo, o público está mais disperso”, compara o publicitário Washington Olivetto. “Mas cada caso é um caso. A propaganda busca sempre uma grande ideia e pertinência, não importa se o garoto-propaganda é um ator de TV ou um youtuber”, explica.
Aconselhados pelo próprio YouTube, que os remunera com base na audiência que arrebatam, os videomakers evitam falar sobre salários nessa mini-Hollywood virtual. Mas é sabido que, em 2015, cerca de 5 bilhões de dólares foram destinados aos donos de canais na plataforma (a conta não inclui os proventos recebidos com trabalhos por fora, mas apenas os rendimentos com a publicidade vendida e exibida pelo Google nesses canais). Principal youtuber do Brasil, com mais de 20 milhões de inscritos em seu canal, o piauiense Whindersson Nunes cobra em torno de 200 000 reais só para citar uma marca em seus programas e nas redes sociais — um cachê digno de galãs da TV como Cauã Reymond.
Dona do canal Boca Rosa, a carioca Bianca Andrade, de 22 anos, nascida no Complexo da Maré e hoje moradora da Barra, debutou no universo digital aos 16 anos com vídeos que mostravam dicas e truques de maquiagem. Atualmente, há ali mais de 4 milhões de inscritos. Bianca hoje divide um comercial de operadora de celular, exibido na TV aberta, com Ivete Sangalo. Ela começou a produzir os vídeos sozinha, em seu quarto na favela, mas agora recebe a ajuda de uma produtora que atende youtubers em todo o Brasil. Também de olho no filão, a multinacional francesa Webedia já investiu 2 milhões de reais em quatro estúdios em Botafogo, onde existe até uma cozinha no estilo Ana Maria Braga.
Mesmo a Globo vem se aliando aos influenciadores digitais. No fim do ano passado, a Globosat lançou a VIU, unidade focada em projetos multiplataforma. “A ideia é potencializar os talentos que já estão na web, descobrir novos e criar parcerias”, explica Paulo Daudt Marinho, líder da área. Neste mês, será lançada uma série on-line e no GNT com Thaynara OG, a queridinha do Snapchat. Empresas especializadas no agenciamento e na consultoria de estrelas virtuais como a gigante Digital Stars, de São Paulo, e a Moovimento, do Rio, ajudam ainda as novas celebridades a lidar com a fama, planejar a carreira e prospectar oportunidades comerciais. “Dispomos até mesmo de dois psicólogos para acompanhar nossos agenciados. Com pouca idade, muito dinheiro e sucesso, é fácil pirar”, conta Thiago Stockler, um dos sócios da Moovimento, que tem um casting de catorze youtubers. “Eles marcam até manicure para mim. Cuidam de tudo”, diz Nayara Rattacasso, que tem mais de 1 milhão de fãs inscritos em seu canal homônimo. Afinal de contas, fama, sucesso e glamour sempre andaram de mãos dadas desde os tempos do cinema mudo.