Um carioca no inferno da Cracolândia
Colegas do Santo Inácio reconhecem amigo de 46 anos em um vídeo e se mobilizam para ajudá-lo a sair do vício e da vida nas ruas
A imagem no vídeo exibido na página A Craco Resiste, grupo que auxilia viciados que perambulam pelas ruas da Cracolândia em São Paulo, mostra um homem de traços ruivos, barba entremeada com fios brancos, tocos de dentes na boca e um discurso meio embolado, sinal do uso contumaz de drogas. As palavras, porém, denotam um vocabulário sofisticado e bom nível cultural. Articulado, fala em tom jocoso sobre o prefeito paulistano, João Dória (a quem chama de “perfeito”), ri do fato de não escovar os dentes há oito anos e conta que toma banho a cada dez dias. “Não tenho cecê nem mau hálito, porque o meu ph é muito alto”, diz exibindo o sorriso banguela.
Divulgado na semana passada, em meio à confusão detonada pela intervenção da prefeitura e do governo do estado de São Paulo na região, o vídeo chamou a atenção de um amigo, hoje executivo de uma empresa de tecnologia. Em seu perfil no Facebook, ele publicou um apelo em que pede ajuda para localizar o homem, na verdade Carlos Eduardo de Albuquerque Maranhão, de 46 anos, seu amigo de classe no Colégio Santo Inácio, em Botafogo. No texto, recorda que Maranhão, também conhecido entre a meninada como “Sarda” ou “Jesus”, morava em um casarão no Alto do Jardim Botânico, região onde fica a mansão do ex-bilionário Eike Batista. “Fui uma ou duas vezes tocar bateria na casa dele. Fizemos uma festa memorável (e sem drogas) lá e muitos acabaram jogados de roupa na piscina”. Em sua mensagem compartilhada na rede social, diz ainda que está disposto a encontrar o amigo em São Paulo. “Quero perguntar se eu posso ajudar. Estou disposto a qualquer coisa. Se pedir, ajudo. Se não quiser, respeito”, escreveu.
A publicação da mensagem provocou uma enorme comoção entre amigos de Maranhão, vários deles médicos, dentistas e profissionais liberais dispostos a custear os tratamentos ou mesmo atendê-lo em seus consultórios. No entanto, todo esse esforço depende de dois passos. O primeiro é ele ser encontrado em meio à horda de viciados agora dispersada por vários pontos de São Paulo. O segundo é aceitar ajuda. A mobilização nas redes sociais revelou alguns detalhes da vida atual do menino de classe média alta que cresceu na Zona Sul carioca. Ele hoje circula entre as ruas, praças e o parque do bairro da Luz, da capital paulista, e costuma dormir eventualmente em uma espelunca localizada na Rua Aurora, área degradada da região central da cidade. A família também atualizou os amigos com mais informações.
Maranhão é dependente químico desde os 16 anos. Aos 20 anos quase morreu de um ataque cardíaco mal explicado, provavelmente causado por overdose. O último encontro entre ele e o executivo carioca ocorreu no início dos anos 90: “Esbarrei com ele no Baixo Gávea, ele estava mal e chegou a me oferecer drogas”, escreveu. Filho de um empresário e de uma economista, Maranhão tem dois irmãos e uma irmã. É o tipo de dependente que tem plena consciência de seu vício e já manifestou abertamente sua opção por esse estilo de vida. Enfrentou diversas internações, tanto por iniciativa própria como por imposição da família. Morou na Bahia, onde teve uma filha, e na Alemanha, antes de ressurgir em São Paulo. Hoje tem um cartão de débito bancário com o qual faz retiradas em uma conta mantida pela família. “Foi uma forma encontrada de mantê-lo longe de encrencas piores, como tráfico”, explica uma pessoa próxima que pediu anonimato.
Semanalmente, sempre às segundas ou quintas, Maranhão liga de telefones públicos a cobrar para falar com a mãe. Essa é a condição imposta por ela para que continue recebendo sua mesada. “Ele teve estudo e tudo o que podia e está assim porque quer”, contou a economista de 79 anos à reportagem de um jornal paulistano, em 2012. Na ocasião, ele havia se tornado uma espécie de celebridade em São Paulo ao se tornar o único morador de rua a carregar no bolso uma decisão judicial que o livrava de eventuais apreensões arbitrárias e de internações contra sua vontade. Na segunda (29), informado por um membro do movimento A Craco Resiste sobre a campanha carioca, pediu para que gravasse um áudio e enviasse para uma amiga no Rio. “Muito legal saber que temos amigos da escola nesse descaminho da vida, saber que a gente deixou para o outro algo de bom”, disse. Os colegas de adolescência, no entanto, ainda não desistiram do encontro e de ajudá-lo.