Brasil: um país de viciados em analgésicos?
Números confirmam aceleração do consumo de medicamentos com alto poder de dependência
A pedido do jornal Folha de São Paulo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) fez um levantamento da venda anual de analgésicos opioides (medicamentos como a oxicodona, codeína e fentanil para controle de dor física, que também produzem sensação de euforia e relaxamento), até junho de 2021. No primeiro semestre do ano passado foram comercializados cerca de 14,5 milhões de embalagens de analgésicos narcóticos no Brasil. Se o número de venda for duplicado, numa estimativa para todo o ano de 2021, chegaremos a quase 29 milhões de caixas de medicamentos que exigem prescrição médica, como oxicodona e metadona. Em 2020, este número beirou os 22 milhões. Isso significaria um crescimento de 33% de um ano para o outro.
Profissionais de saúde e autoridades sanitárias estão em alerta diante da escalada no país do uso de opióides, com potencial de criar alto grau de dependência. Em 2019, estudo da Fiocruz concluiu que 4,4 milhões de pessoas já utilizaram algum opiáceo sem prescrição médica, ou seja, 2,9% dos brasileiros. Pouco antes, em 2018, estudo da American Journal of Public Health, indicou que a venda de analgésicos a base de ópio teve crescimento de 465% em seis anos.
Ainda não há dados oficiais sobre o período, mas estima-se que o quadro tenha sido ainda mais agravado por conta da pandemia, quando muitos pacientes não apenas deixaram de consultar seus médicos por medo de contrair a Covid-19, mas também tiveram a saúde mental fortemente atingida pelo distanciamento social, inseguranças e medos – fatores que podem potencializar a sensação de dor física. Nesse cenário, não é difícil supor que há muitos pacientes consumindo opioides por falta de precisão no diagnóstico ou erro de orientação no tratamento de dores crônicas, como cefaleia, enxaqueca ou alguns casos de dor lombar. Uma epidemia em potencial.
Foi o que aconteceu nos Estados Unidos. Por lá, há alguns anos se deflagrou um consumo descontrolado desses narcóticos, levando à maior epidemia de usuários de drogas da história do país, com cerca de meio milhão de mortos por overdose em 20 anos. Este número recuou, mas continua altíssimo. De acordo com o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) de abril de 2020 a abril de 2021 houve 100 mil mortes por overdose, principalmente pelo uso dessas substâncias.
Além de todas as implicações sanitárias, o vício impõe ainda uma tragédia social. Para amenizar a abstinência em consequência da dificuldade de comprar os medicamentos legalmente, em farmácias e com prescrição médica, os dependentes recorrerem a opioides ilícitos, como a heroína.
A Organização Mundial de Saúde orienta que o tratamento de dores precisa atender uma gradação, começando com analgésicos, passando por antiinflamatórios até chegar, finalmente, nos opioides. No Brasil, 4 em cada 10 pessoas padecem de alguma dor crônica – um gigantesco mercado consumidor de opioides. É preciso que autoridades sanitárias, agências reguladoras, profissionais de saúde e governos enfrentem o problema com a coragem que ele demanda – enquanto há tempo.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.