Por muitos anos foi uma certeza no país: brasileiro não gosta de política. A raiz de todos os nossos problemas como nação estava ancorada no desinteresse de décadas do povo por políticas públicas. “Tanto faz: são todos ladrões”, resumia o senso comum. Talvez a origem desta aparente apatia se explicasse pelos 21 anos silenciados pela ditadura. Por esta tese, os brasileiros teriam virado as costas para a política porque não podiam se expressar com liberdade.
Mas eis que desde a redemocratização – especialmente de alguns anos pra cá, talvez desde a última década – a política se tornou um tema recorrente em todas as rodas de conversas. O surgimento e a popularização das redes sociais serviram de amplificador da expressão de opiniões. É possível supor que o desinteresse do brasileiro por política não fosse tão grande quanto se imaginava – apenas não havia um canal público e gratuito para demonstrar o entusiamos com o tema.
Porém, o que vimos nos últimos anos é um FlaxFlu ideológico. Não se discute política, discutem-se paixões, longe da razoabilidade – a maior prova disso é que, de acordo com as pesquisas, 80% dos eleitores afirmam já estar com seu candidato escolhido. Neste contexto, muita gente adoeceu: amizades foram desfeitas, relações de trabalho e familiares ficaram estremecidas e injustificados atos de violência extrema – entre eleitores e até contra jornalistas – se tornaram recorrentes no país em nome de um “fervor político” que soa como novidade para quem viveu o Brasil das últimas décadas.
De acordo com levantamento do DataFolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e da Raps (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), sete em cada dez pessoas dizem ter medo de serem agredidas fisicamente por causa das suas escolhas políticas. Além disso, 3,2% das pessoas ouvidas pelo Instituto disseram ter sofrido ameaças por motivos políticos nos últimos 30 dias; é o equivalente a 5,3 milhões da população brasileira.
Em matéria recente, o jornal Folha de São Paulo relata o surgimento de rodas de conversas justamente para ajudar as pessoas a manterem a saúde mental em tempos tão delicados como agora. A iniciativa teve início logo após a eleição de 2018, após um grupo de pessoas apresentar sintomas de ansiedade, como pesadelos, insônia, isolamento, compulsão alimentar ou falta de apetite. Com o surgimento da Covid-19, os encontros migraram do presencial para o ambiente online. De acordo com a organizadora dos encontros, 800 pessoas já passaram pelas rodas de conversas entre 2020 e 2021.
No Rio, o Instituto de Psicologia da UERJ também organizou uma roda voltada para quadros de ansiedade em decorrência das eleições, voltado especificamente para o público LGBTQIA+, focado na prevenção ao suicídio. O grupo, com mais de 250 participantes, foi criado para atender alunos da universidade que se sentiram ameaçados de sair de casa e frequentar as aulas depois das últimas eleições. Quadros de fobia social, pânico e depressão foram identificados entre os participantes da roda. “A ansiedade é um acúmulo do passado com o medo do futuro”, resumiu um dos integrantes a respeito de sua saúde mental.
As experiências de terapia coletiva são muito úteis por diversas razões. A primeira delas é deixar claro que as pessoas não estão sozinhas e que seus sentimentos de angústia ou dúvidas são compartilhados por dezenas de outras pessoas. Em seguindo lugar, expor esses sentimentos em um espaço de elaboração coletiva ajuda a enfrentá-los com mais objetividade, aumentando a autoestima e a capacidade de reação.
Respondendo à pergunta-título: há como manter a saúde mental em tempos de eleições tão polarizadas? Não se pode perder de vista que a diferença de opinião é a essência da democracia. Divergências de pontos de vista sempre existirão. Porém, se o clima se tornar insuportável, por qualquer razão, não tenha medo ou vergonha de se afastar dele. Reconhecer um ambiente tóxico é o primeiro passo para ter controle sobre ele. É durante a temporada eleitoral que as redes sociais ficam mais contaminadas, inclusive de fake news gestadas nas bolhas radicais. Portanto, use com moderação. Na hora de se informar, busque fontes confiáveis de notícias e evite repassar informações que soem duvidosas. Uma boa matéria jornalística explicita o contraditório de dois lados. Uma pretensa reportagem que se dedica apenas a atacar um lado, sem ouvi-lo, deve ser vista com suspeição.
A essência da política é o diálogo, a troca, ouvir e falar, discordar e ceder. Diante desse pressuposto, é possível crer que o brasileiro continua não gostando de política. Nos tornamos, isso sim, testemunhas da violência disfarçada de “política”, movida pela desavença, pelo ódio e pela agressão que desafiam nossa saúde mental.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.