Poucos assuntos são capazes de mobilizar o brasileiro com tamanha intensidade quanto o futebol, e em especial a Copa do Mundo. Compromissos são adiados, reuniões ficam suspensas, estabelecimentos fecham as portas para que todos os olhos se voltem para a bola em campo, sem maiores preocupações. O campeonato mundial tem a capacidade de chutar para longe o que o genial dramaturgo Nelson Rodrigues definiu como “complexo de vira-lata”: naquelas quatro linhas, somos os únicos participantes detentores de cinco títulos. Temos, portanto, autoridade inconteste, reconhecida pelo mundo e pelos adversários.
Tamanha relevância ultrapassa as fronteiras do esporte. O futebol no Brasil cria ídolos, permite mobilidade social, faz girar um dos braços da indústria do entretenimento… mas vai além: cria laços sociais. Por décadas – desde que eu me entendo por gente, na verdade – quando o juiz apita e a bola rola, todos vestimos a camisa amarela como símbolo de um povo, de um país. A camisa canarinho não significava nada além disso: somos milhões de pessoas que nascemos no mesmo território geográfico e apesar de todas as diferenças que nos separam, temos um traço social que nos identifica e uma paixão que nos une.
Nos últimos anos, infelizmente, essa percepção mudou. A polarização política fez com que um lado da disputa se apropriasse de símbolos – como a camisa amarela da seleção ou a bandeira nacional – que não pertencem à um governo específico, mas à nação. Andaram cogitando a substituição da camisa amarela pela azul na torcida pela seleção. Pessoalmente, acho uma pena. Um grande desperdício de oportunidade.
A Copa do Mundo é uma excelente chance de resgate para nós, brasileiros. E não apenas dos símbolos nacionais que foram sequestrados, sem licença, nos últimos tempos. Há um caráter de unidade, que há muito nos foi sonegado, que os onze jogadores em campo tem condições de recuperar.
Quem observa os comerciais na TV com olhos atentos já notou o esforço das campanhas publicitárias na direção de unificar a torcidade novamente. O presidente eleito pela maioria dos brasileiros – goste ou não dele – já declarou à imprensa que pretende acompanhar os jogos da seleção vestindo a camisa amarela. É outro passo importante na tentativa desse resgate.
Com o pleito encerrado, é hora de baixar a bola política para que ela, a bola de verdade, possa brilhar em campo com o apoio incondicional a que está acostumada.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.