Sucesso em livro e, mais recentemente, em série de TV, “Handmaid’s Tale” (ou “O conto da Aia” em português) é uma obra da romancista Margaret Atwood. A trama se situa em mundo distópico, onde a infertilidade é um mal que atinge a Humanidade e as poucas mulheres que ainda conseguem engravidar são subjugadas às vontades dos homens e dos casais, de uma forma geral. Cria-se um bizarro sistema de castas regido pela capacidade de engravidar. Férteis ou não, todas as mulheres são percebidas e tratadas como uma raça inferior.
A obra de Atwood me veio à cabeça ao ter contato com pesquisa divulgada pela Organização das Nações Unidas nesta semana. De acordo com a ONU, 84,5% das pessoas no Brasil afirmam ter pelo menos um tipo de preconceito contra mulheres, mesmo número de dez anos atrás. Na prática, estamos falando de quem não vota em candidata mulher, em que cancela um Uber ao ver que a motorista é do sexo feminino, em quem prefere consulta médica com profissionais do sexo masculino. Reconheceu alguém? Pois é, estas pessoas estão mais próximas do que imaginamos.
É estarrecedor que não tenhamos avançado nada na última década, o que acaba resultando na falta de representatividade feminina no mundo corporativo, na política, nas posições de tomada de poder – sem falar na equiparação salarial (embora as mulheres tenham mais formação ganham, em média, 39% a menos que os homens).
Além disso, é assustador que este percentual seja composto tanto por homens quanto pelas próprias mulheres. Será que elas não se dão conta que, ao perpetuarem essa percepção abrem espaço para endossar atos de feminicídio?
Um dos objetivos estabelecidos pela ONU é alcançar a igualdade de gênero até 2030. No entanto, especialistas afirmam que, no ritmo atual, ainda serão necessários 186 anos para se atingir a igualdade entre os gêneros. Os passos lentos se explicam porque, mesmo com avanços na legislação que defende os direitos das mulheres, velhas convenções sociais permanecem encrustadas na mentalidade das pessoas.
Detalhe: em recente entrevista, Margaret Atwood afirmou que, por mais assustador que seja, nada em sua obra é ficção. Tudo que nos choca e soa perverso na série é fruto de uma intensa pesquisa sobre como as mulheres foram tratadas ao longo dos séculos, da Era Medieval até hoje. Tendo conhecimento das informações da ONU, é possível supor que a autora, infelizmente, ainda terá material para muitas temporadas.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.