Na última coluna, abordei o tema da Copa do Mundo como um catalizador de atenções – e paixões! – no Brasil, uma possibilidade concreta de adequação de percepção acerca de símbolos como a bandeira nacional e a camisa amarela da Seleção. Para além das questões que tangem o Brasil, a competição é uma oportunidade rara de união dos povos, mobilizando tantas nações de um mundo complexo e heterogêneo. Porém, desde que o Campeonato começou, temos visto muito mais do que isso. Estamos testemunhando protestos genuínos dos mais diferentes países sobre temas que lhe são caros.
O Irã, que há semanas vive uma convulsão sobre o papel da mulher na sociedade desde que uma jovem curda foi morta pela polícia da moralidade, viu mulheres iranianas nos estádios, sem burca – uma reividincação antiga de boa parte da sociedade. Em campo, os jogadores se recusaram a cantar o hino do país. Um dos jogadores acabou preso, acusado de espalhar propaganda contra a república islâmica e tentar minar a seleção nacional na Copa.
Vivendo em um país que goza de liberdade plena e pouco acostumados a censuras, os jogadores ingleses protestaram contra o racismo na partida contra o Irã se ajoelhando em campo antes da partida. A seleção inglesa também se envolveu em outra discussão com a Federação Internacional de Associações de Futebol (Fifa). É que uma regra imposta pela Fifa afirma que os capitães que utilizarem a braçadeira serão penalizados esportivamente com um cartão amarelo, antes mesmo da partida começar, além de receberem uma multa financeira.
O mal-estar foi criado porque sete seleções europeias, entre elas a inglesa, pretendiam entrar em campo com a braçadeira “One Love”, em apoio à igualdade, incluindo à comunidade LGBTQIA+. Mesmo proibidos, o capitão da equipe, Harry Kane, utilizou uma braçadeira preta com amarelo com os dizeres “Não à discriminação”.
Pela mesma razão, jogadores da Alemanha protestaram levando as mãos à boca. Todos os jogadores alemães participaram do gesto diante de dezenas de fotógrafos em campo antes do pontapé inicial, após a Fifa ter ameaçado sete times europeus com punições caso usassem a braçadeira que simboliza a diversidade e a tolerância.
No Catar, país que recebe a Copa 2022 é crime ser gay, lésbica, bissexual ou transgênero e sexo extraconjugal, incluindo entre pessoas do mesmo sexo, pode ser punido com até sete anos de prisão. A aversão a gays é tamanha que uma bandeira de Pernambuco levada por torcedores brasileiros, foi confiscada à entrada do estádio por ter um desenho de um arco-íris – preente no símbolo pernambucano desde 1817.
Em pleno 2022, os emocionantes protestos contra censuras, em apenas uma semana de Copa, explicitam que a Humanidade não aceita mais certo tipo de regras que ferem os Direitos Humanos, cerceiam a liberdade e impõem um suposto modo único de se viver – e ser feliz. Nos resta desejar que tantas lições transbordem dos gramados e se tornem realidade em todas as nações.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.